quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Sobre Gal Costa, Clarice Lispector e a tarde


Olá!





Não sei se já escrevi em algum canto desse blog que sou absolutamente fascinado pelo voz de Gal Costa. Toda vez que acontece de ouvi-la - e são muitas vezes no dia, propositalmente ou não -, é como se eu fosse varado por uma espécie de revelação. A voz de Gal me transpassa como um raio, potente, seu agudo também me deixa agudo, pleno de beleza e de encantamento. Sobretudo quando a ouço de tarde, esse que é o espaço das epifanias, da beleza por excelência. Ter uma tarde livre, como hoje - Quarta-feira de Cinzas - é um convite a ouvir Gal Costa.

Mas nessa tarde específica, eis que à re-descoberta de Gal, me assomou a descoberta de Clarice. Como assim eu não a conhecia? Não, que ninguém se engane: Clarice é uma velha conhecida minha, uma das minhas grandes amigas - que tem se tornado íntima. Mas devo confessar já: sempre tive um grande respeito por ela, um respeito imenso que me fazia ter medo. Tive medo de ler Clarice. Medo de quê? Ora, das revelações que aquele caldeirão de palavras pudessem me mostrar! Mas esse medo eu fui perdendo, entrei pelo caminho mais fácil, aquele que ela abriu com suavidade aos leitores, como se dissesse, "Entrem, não dói, viu!", que é o livro "A hora da estrela". Li depois os contos. Espantoso. O mesmo espanto senti quando li "Amor" senti quando ouvi Gal cantar "É preciso dizer adeus", do Vinícius e do Tom. Os romances eu não li todos, ainda. "Perto do coração selvagem" me deixou tonto: como uma menina de 17 anos escreve aquilo, Jesus? "Água-viva" foi um susto que dura até hoje. "A paixão segundo G.H." é uma leitura perene, ainda não totalmente realizável. Há incompreensões ali, que ainda serão reveladas. Assim são os romances dela. Por isso os leio devagar, sem ordem e sem compromisso. Guardo-os para que eu sempre tenho um mistério comigo. Porque é isso que leitura dos livros dela fazem conosco: revelam segredos.

Mas hoje, ainda há pouco, puxei da estante "A maçã no escuro". O tenho há tempos, uma edição velinha, de sebo, um um lindo desenho na capa, da noite e do clarão da lua. Nóis dois, o livro e eu, sempre nos olhamos de longe, esperando o dia do encontro. Como ele é um livro de Clarice, sempre soube que o encontro seria assim, ao acaso. Que é como leio os livros dela. Pego-os assim ao acaso e abro, como se fosse o I Ching, o livro chinês das mutações. Das revelações. E então, na tarde de hojme quando decidi que seria o dia de ler "A maçã no escuro", o peguei, abri ao acaso, e eis que li:



"E sob o sol amarelo, sentado numa pedra, sem a menor garantia - o homem agora se rejubilava como se não compreender fosse uma criação. Essa cautela que uma pessoa tem de transformar a coisa em algo comparável e então abordável, e, só a partir desse momento de segurança, olha e se permite ver porque felizmente já será tarde demais para não compreender - essa precaução Martim perdera. E não compreender estava de súbito lhe dando o mundo inteiro". (p. 32)



Fiquei extático, que é estar em êxtase, e também estático, que é ficar imóvel, como fiquei. Depois pensei que estar vivo é isto. É estar para além da teoria, da história, das relações afetivas, dos livros, sem compreender, apenas existindo. É o que Clarice quis dizer. É o que sinto agora, nesta tarde. De repente, sumiu a estante com seus muitos livros, sumiu a mesa, o computador, os papéis, os móveis e a própria biblioteca desapareceu, fiquei apenas eu, existindo. Pus a Gal para tocar, sem pensar na letra, só a voz. Existindo. Como eu existo, nessa tarde tão vasta. Vasta como o mundo inteiro. E que cabe, ainda assim, dentro de mim, de tão verdadeira.



Do Jorge.

P.s.: esse da foto sou eu mesmo, contemplando o mar, à tarde. O lugar? Não importa mais. Importa só que está acontecendo isto: estou existindo também na foto.