quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Um comprimido para dormir... (II)




Olá!


Já estou quase emborcando no sono, luto ainda contra ele porque quero concluir ao menos esse capítulo do romance "Uma casa no fim do mundo", do Michael Cunningham, que ando lendo nesses dias. E é dele o trecho que vai hoje, aqui, como uma pílula para dormir (um Rivotril poético, se assim quiserem).
O personagem Bobby está na cozinha da casa de seus amigos Clare e Jonnathan, tentando pregar uma peça neste último, quando subitamente se recorda de seu irmão Carlton, morto há anos atrás. Ele diz:


"(...) Me ocorreu que a própria morte talvez fosse uma forma mais distante de participação na contínua história do mundo. A morte poderia ser assim - uma simultânea presença e ausência enquanto os amigos da gente continuavam a conversar, entre lâmpadas e móveis, sobre alguém que não era mais você. Pela primeira vez em vários anos senti a presença do meu irmão. Senti inequivocadamente - sua essência, seu propósito, a característica de Carlton que permanecia depois que a voz, a carne e todas as outra consequências corporais já tinham ido embora. Eu o senti naquela cozinha com tanta certeza quando tinha sentido numa tarde fria e branca no cemitério, anos antes, quando um brilhante futuro reverberava para além dos túmulos, para além da curvatura da Terra." (p. 162)


Pura beleza, não?
Do Jorge.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

A elegância das coisas















Olá!



Adoro estantes. Com livros, discos, dvds, repletas de pequenas memórias. Tenho duas, em casa. A de livros, repleta, já esperando uma expansão para acomodar os livros que não cabem mais e que se espalham já pelo chão e por debaixo da mesa da biblioteca. E a da sala, com tv, aparelho de dvd, receptor e meus cds, dvds, boxes do Caetano e do Ney, Mozart, Beethoven, Maria Bethânia... divago. De vez em quando deixo uma fresta da minha vida privada escapar por aqui. Bem, é só usar a tecla delete e ir apagando tudo, certo? Mas não. Deixa essa frestinha aí jogando luz. Só ela.

Mas por que escrever sobre isso?, perguntam. É que hoje descobri um blog pra lá de supimpa. É o da atriz Mika Lins (ela ganhou certa notoriedade há uns quatro anos atrás, quando interpretou a vilã Esther na novela "Os ricos também choram", remake digno, exibido pelo Sbt, mas que trabalha muito no teatro em Sampa). Ela tem paixões semelhantes às minhas: fotografia, livros, música e... estantes. O blog dela é repleto delas. Vale a pena dar uma espiadela. Postei a estante da Mika aí acima, para um gostinho. O link do blog é eleganciadascoisas.blogspot.com. Cliquem tranquilos e confiram a elegância das coisas na visão de Mika Lins.


Do Jorge.

domingo, 22 de novembro de 2009

Quem não vive tem medo da morte

Olá!

Em outro momento neste blog já escrevi sobre o Ney Matogrosso, que considero um exemplo de artista completo, seja pela sua bela e rara voz, seja pelas suas ousadas posturas cênicas, que têm, antes de tudo, verdade e lirismo. Nessas últimas semanas o tenho ouvido muito, quase à exaustão, num trabalho de (re)lapidar disco por disco, desde o ousado "Água do céu-pássaro", até o belo "À flor da pele", presentes na caixa Camaleão, que a Universal lançou recentemente, cobrindo o período 1975-1991.

E em meio à sua discografia, me deparei com este que já considero um dos meus discos prediletos, "Quem não vive tem medo da morte". Já me encantei de cara com a capa, mostrando o Ney de cabeça baixa, um chapelão preto cobrindo metade do rosto, o corpo recoberto por uma manta azul. Místico. Aliás, todo o repertório o é. Na contracapa, o Ney explica que as canções foram escolhidas por suas mensagens espirituais, já que naquela época (1988), ele andava às voltas com experiências religiosas e místicas através do culto do Santo Daime. Por isso, canções que fazem referência à transformações radicais ("Um rei"), que falam do despojamento necessário para se encontrar a felicidade ("Felicidade zen"), das mil facetas do existir ("Chavão abre porta grande", de onde foi tirado o verso que nomeia o disco), dos mistérios e desencontros do amor ("Dama do cassino", belíssima), da necessidade de solidão ("Só") ou da amizade ("Caro amigo"). Enfim, um álbum repleto de preciosidades que pouco ou nada tocaram nas rádios, mas que são como um bálsamo em meio à loucura contemporânea. Um disco de um artista em plena fase de auto-conhecimento, como diz a contra-capa.
Como texto do dia, posto a letra de "Um rei", de Celsinho Fonseca e Ronaldo Bastos:


UM REI


Afasta o destino, vai
Se muda do teu lugar
Finge que és ninguém
Disperso na multidão
A mão do destino tem
Mil dedos que não se vê
E lábios que finos são
Algemas para prender um rei

As forças ocultas, sim
São cartas marcadas
Ninhos na solidão
Em fios de alta-tensão
As voltas que o mundo dá
Nas linhas mais retas são
Presságios que vêm do mar
Por ondas incertas que vão te afogar

Tudo que a vida aprontou com você
Deu no que era pra dar
Nunca se pode tentar desfazer
Mas nada se perde em tentar
Círculos falsos, miragens reais
Linhas na palma da mão
Num labirinto de tramas fatais
A indecifrável visão.


Claro que ouvir essa letra na voz do Ney é uma experiência superior à leitura. Tentem encontrar a gravação, acho que no Sonora (Terra) há a obra do Ney completa, pra ouvir. Vale muito a pena. Vale como reflexão, sobre a vida mesmo, essa nossa desconhecida. Afinal, como diz a canção, "nada se perde em tentar".



Do Jorge.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Uma paixão

Olá!

Amanhã, por orientação da Secretaria de Educação, deveremos ler um texto, à nossa escolha, para os nossos alunos, entre 15h30 e 15h45. 15 minutos de leitura. Fiquei pensando no que ler para os meninos. lembrei do conto "A mão no ombro", da Lygia Fagundes Telles e que gosto muito, mas não decidi na hora. Fiquei de pensar melhor. Quando cheguei em casa, depois da minha corrida diária e do banho, fui até minha estante olhar para aqueles livros, para que eles me revelassem o texto ideal. Sim, amigos, os livros me dizem coisas extraordinárias. Por isso os levo tão à sério, por isso escolher um texto literário para uma turma, um texto curto que caiba em 15 minutos é, para mim, uma tarefa séria. Por isso fitei as lombadas. E veio. A resposta. O poema "Para a feira do livro", do João Cabral de Melo Neto. "Perfeito", eu disse, retirando as Obras Completas do poeta pernambucano, o poema me veio de cor antes que eu chegasse a ele:


PARA A FEIRA DO LIVRO


A Ángel Crespo


Folheada, a folha de um livro retoma
o lânguido vegetal de folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que o vento em folha de livro.
Todavia, a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania, varrendo o podre a zero.


Silencioso: quer fechado ou aberto,
Incluso o que grita dentro, anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam as suas redes.
Mas apesar disso e apesar do paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.



Os olhos marejaram, é claro. Nunca alguém foi tão preciso ao descrever o amor aos livros. A comparação entre o livro e a árvore, entre as folhas dele e dela, é algo sublime. A árvore, como o livro, personifica, ao mesmo tempo, a idéia de sabedoria e de eternidade. É o que o livro representa para mim, é o que amanhã, depois de ler o poema, pretendo discutir com os alunos, o saber e o sempre, o eterno, o perene. Agradeci pelo dom de ser leitor. Um dom raro, hoje em dia, que guardo como um tesouro. Como meus livros.


Do Jorge.
P.S.: a estante da foto é a minha própria.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Sexta-feira 13: dia de poesia!


Olá!


Tabus mil pairam sobre esse malfadado 13. Sobretudo quando desafortunado numeral recai numa sexta-feira como hoje. Aí é ver gato preto e correr para o banho de sal grosso, corre-se tal o demo da cruz quando se vê uma escadinha inocente no canto. Passar por debaixo dela? Deus o livre, sangue de Cristo tem poder!! Só com arruda atrás da orelha, e isso para os realmente valentes.

Bom, tudo são supertições... e quem não as têm? E para quebrar um pouco o encanto dessa sexta-feira (que, como dizia um locutor de rádio lá da minha terra, é "dia internacional das armações"), despejo aqui um poeminha, um bafejo de luz sobre o breu dessa sexta-feira 13:



MEMÓRIA


Amar o perdido
deixa confundido
este coração.


Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.


Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

(Carlos Drummond de Andrade)



Do Jorge.


P.S.: não façam como o desavisado que me corrigiu, dizendo que "olvido" é um com u. O órgão responsável pela audição sim. Esse olvido quer dizer "esquecido". É um "espanholismo" do Drummond (olvidar = esquecer).