segunda-feira, 25 de abril de 2011

A fita branca


Olá!





Poucas vezes pude ver no cinema uma reflexão tão aguda sobre o mal como neste extraordinário "A fita branca", filme do alemão Michael Haneke, lançado em 2009 e que vi este fim de semana. Poucas vezes mergulhei tão agudamente neste sentimento tão estranho e ao mesmo tempo tão humano como a perversidade. Ou a banalidade do ato de ser perverso, se quiserem.


O enredo do filme é simples: em um vilarejo alemão, em 1913, portanto, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, ocorrem fatos estranhos e perturbadores. Adultos e crianças sofrem pequenos acidentes e atentados, sem que se consiga apontar o(s) responsável(is). O clima de medo toda conta de todos e a comunidade se vê coberta por um manto de escuridão e desconfiança. A história é narrada por um velho professor, anos depois. Ele próprio personagem dos acontecimentos, conta tudo sem compreender bem o que se passou, mas que apenas foi capaz de absorver a maldade extrema que permeou aqueles atos tão violentos.


No centro do mistério (e, ao final, continuamos mergulhados nele, já que nada se resolve de fato) está um grupo de crianças, em sua maioria alunos deste professor. São crianças comuns: os filhos do pastor luteranos, dos camponeses, do barão que é dono das terras e provedor dos aldeões. Crianças inofensivas, mas que, tomamos consciência à medida em que o filme avança, estão enredadas em meio àquela onde de ataques e mortes. É um perturbador conluio entre a inocência e o pecado. Melhor não dizer pecado, mas apenas o mal, já que o autor - ou autores - dos crimes parece não dispor da consciência de que pratica algo monstruoso. E não é com surpresa que, ao notar a idade das crianças - entre 6 e 12 anos - descobrimos que é essa geração que, nas próximas décadas, irá abraçar o nazismo alemão, outro símbolo do mal e da monstruosidade.


Haneke conduz o filme com maestria, como de costume. Rodado em preto e branco, o filme possui uma narrativa que nos faz sentir parte do enredo, como se fóssemos um par de olhos imiscuído na história, impassíveis observadores. Digo impassíveis porque não nos é dado interferir (o que, se pudéssemos, certamente faríamos), mas apenas acompanhar, com a espilha gelada, os fatos. Atores, figuros, cenografia, fotografia, tudo contribui para tornar o espetáculo ainda mais vívido. Não é à toa que o filme conquistou a Palma de Ouro em Cannes.


Por tudo isso, mais que recomendo o filme. Vejam "A fita branca". Vejam como, ao mesmo tempo, uma brilhante obra de arte e uma potente reflexão sobre o mal e sobre como ele, muitas vezes, parece ser tão natural ao ser humano.





Do Jorge.

domingo, 24 de abril de 2011

Um leitor






Olá!







Nem preciso aludir ao fato de que fiquei tanto tempo afastado deste blog. Já é conhecido esse meu, às vezes necessário, desaparecimento. Mas volto, sempre volto. Como tudo na vida, tenho necessidade do meu período sabático, para reflexão ou exercício do meu ócio. Mas retomo, nunca deixo nenhum fio da vida desatado, mesmo que isso demande tempo demais, além do necessário. Com esse blog não é diferente. Ele é parte da minha vida, também. É repleto de flashs do meu cotidiano, muitas vezes das partes mais íntimas da minha existência. Por que seria diferente?




A verdade é que, nesse tempo, li, como tenho lido ao longo dos anos. Os livros sempre por detrás de mim, à espreita, esperando que eu percorra as suas páginas, algumas repletas da mais extasiante beleza, outras áridas montanhas da teoria, que tenho de escalar. Mas, invariavelmente, leio. Leio e ouço música, como agora o faço: enquanto escrevo, ponho o Concerto em Sol, de Ravel, para tocar no som. Não o primeiro nem o terceiro movimentos, que são cheios de fúria, mas o Adagio, o lento segundo movimento, com sua calma contemplativa. Porque hoje quero contemplar. Como dizia, li muito nestes dias. E reli coisas também. Estou sempre relendo, porque o que amo tem que estar sempre perto de mim. E como sãos as pessoas, são os livros (ô, São Francisco!): Adélia Prado, Lygia Fagundes Telles, Shakespeare, a Divina Comédia, de Dante, as formulações teóricas de Roland Barthes, sempre que posso retiro um destes da estante e repasso os olhos, tentando absorvê-los. E os tenhos absorvido, com devoção quero que eles façam parte de mim. Gosto de citá-los, de aludir a eles, os meus autores favoritos. E são muitos. Entre eles, há os muito caros ao meu espírito. Como estes que citei. E como Borges, o grande Jorge Luis Borges, meu homônimo, que sempre reverencio.




Como sabem (eu próprio já escrevi algumas vezes sobre ele aqui no blog), Borges ficou cego cedo e grande parte da sua obra foi ditada, principalmente à sua mãe, que cuidou do escritor até a morte dela, em 1979. Ela também lia para ele, o que prova que a cegueira não o impediu de ler e reler, maravilhoso, as páginas amadas. Porque Borges amava os livros e as suas histórias. Sua memória era prodigiosa. Mesmo sem exergar, ele aludia às Mil e uma noites, à Dante, à Shakespeare, à Chaucer e Cervantes. E escrevia sobre eles. Borges é, pode-se dizer, um dos pais da teoria intertextual, já que reelaborou muitos textos clássicos. Sempre volto a seu conto "Pierre Menard, autor do Quixote" quando quero compreender melhor o diálogo entre textos. Borges tratava com reverência seus autores preferidos, sabia que eles o enriqueciam e enriqueciam sua literatura. E o escritor sabia que era a leitura a responsável por esse enriquecimento, indubitavelmente.




Em 1968, ele já estava completamente cego. E foi com esse olhos baços, mas mais perspicazes do que nunca, que ele escreveu este belo poema, com que encerro esse post, uma ode aos livros e ao prazer da leitura:









JUNHO, 1968


Na tarde de ouro

ou numa serenidade cujo símbolo

poderia ser a tarde de ouro,

o homem dispõe os livros

nas prateleiras que aguardam

e sente o pergaminho, o couro, a tela

e o agrado que dão

a previsão de um hábito

e o estabelecimento de uma ordem.

Stevenson e o outro escocês, Andrew Lang,

reatarão aqui, magicamente,

a lenta discussão que interromperam

os mares e a morte

e a Reyes não lhe desagradará decerto

a vizinhança de Virgílio.

(Ordenar bibliotecas é exercer,

de um modo silencioso e modesto,

a arte da crítica.)

O homem está cego,

sabe que não poderá deslindar

os formosos volumes que manuseia

e que não lhe ajudarão a escrever

o livro que o justificará ante os outros,

mas na tarde que é casualmente de ouro

sorri perante o curioso destino

e sente essa felicidade peculiar

das velhas coisas amadas.



(1969)





Em minha biblioteca, Jorge Luis Borges, homem-monumento, está justificado, entre tantos outros autores que, como ele, são dignos de que o leiam. E que serão lidos sempre, per omnina secula seculorum.






Do Jorge.