sábado, 25 de junho de 2011

Cheiro forte





Olá!




Escrevo recorrentemente sobre alguns autores aqui no blog. Um deles, como se pode ver pelos posts anteriores, é Silviano Santiago. Estou com aquela febre, sabe, aquela que, de vez em quando, me pega - e pega forte. Fico vidrado num autor, tomado mesmo por uma espécie de mesmerismo por ele. Leio e releio muito, até gastar. Como tenho feito com Silviano. Emendei "Em liberdade" com "Heranças" e agora estou lendo "O falso mentiroso". E nesse meio tempo, li (reli) "Cheiro forte", um singelo e contundente livrinho (entendam, em apenas 59 páginas) de poemas que o autor mineiro publicou em 1995 e que traz textos sobre o corpo. Sobre o passagem do tempo sobre ele. Sobre o seu contato com outro(s) corpo(s). Sobre os desejos e as sensações que o atravessam. Porque para Silviano, o corpo é, apenas. Como diz em um dos poemas: "Tenho este corpo. / Adotei-o como máquina / antes". E na visão do poeta, é com essa máquina que experimentamos o mundo, que o sentimos enquanto um lugar repleto de fenômenos, como diria Husserl. O corpo que tem mil sentidos, porque tem mil olhos, narizes, ouvidos, orgãos, sexos, medulas e ossos. O corpo é como uma antena que todo o tempo capta em redor. E que decodifica tudo, compreende, processa e dá sentido. O que corpo que, enfim, nos norteia, neste eterno tatear que é a vida.


E, como não poderia deixar de ser, é com um texto do livro de Santiago que recheio o post de hoje, pequeno pico na veia, a veia que é, também ela, parte deste corpo que trago comigo. Ou que me traz consigo, tanto faz. Ei-lo:





Cheiro forte
ao passar pelo corpo
que me atrai,
como estreito os lábios
conta a polpa
de



Agarro a solidão
como uma faca
depois do garfo.

(p. 22).




Do Jorge.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Bach e Muitas vozes



Olá!



Tarde azul, o campo da epifania. É um oásis no meio do frio mês de junho, até o sol, ainda que timidamente, reverbera entre as dracenas no quintal. Decido que não posso perdê-los, a tarde e o sol. Vou até a estante escolho, disco e livro, decidido: A Suíte Inglesa nº 2, de Bach, e "Muitas vozes", de Ferreira Gullar. Ponho o disco, devagar, como devem ser os prazeres, lentamente mergulhando neles, escolho a "Sarabanda". No piano, Martha Argerich pressiona cada nota com a precisão de uma artesã, sois, dós e mis enchem a casa, como numa benção. Sento no sofá e abro o livro, com cuidado procuro o poema e, ao encontrá-lo, recito-o alto, minha voz de mistura com o som cristalino do piano, Bach e Gullar irmanando-se. Sinto que o momento é solene. Por isso falo como se fosse um sacerdote a emitir uma sentença da qual depende a felicidade do planeta, da tarde, a minha própria, que seja. E não sou, aqui, ao menos nesse momento?




MUITAS VOZES




Meu poema
é um tumulto:
a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido.



(estamos todos nós
cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz:




se dizes pêra
acende-se um clarão
um rastilho
de tardes e açúcares
ou
se azul disseres
pode ser que se agite
o Egeu
em tuas glândulas)



A água que ouviste
num soneto de Rilke
os ínfimos
rumores de capim
o sabor
do hortelã
(essa alegria)




a boca fria
da moça
o maruim
na poça
a hemorragia
da manhã




tudo isso em ti
se deposita
e cala.
Até que de repente
um susto
ou uma ventania
(que o poema dispara)
chama
esse fósseis à fala




Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.


(1999)






Do Jorge.