domingo, 21 de agosto de 2011

Saramago e a memória





Olá!




Ando às voltas com os diários de Saramago, publicados sob o título de "Cadernos de Lanzarote". Neles, o autor fala desde banalidades, como a solução encontrada para escurecer o piso da casa, até o processo de redação de seus romances, como "Ensaio sobre a cegueira" e "Todos os nomes". Acompanha-se as viagens do José pelo mundo, visitando feiras literárias, dando conferências, participando de júris de prêmios e recebendo também seus próprios prêmios. Saramago é um observador arguto da realidade e seu olhar cobre importantes acontecimentos da história do final do século XX (os diários foram redigidos entre 1993 e 1997). É com desconfiança que ele vê, por exemplo, os primeiros passos da União Européia ou as políticas culturais do governo Cavaco e Silva, em Portugal. O autor também não poupa seus colegas de pena, fazendo comentários mordazes sobre a inveja que Antonio Tabucchi sente por ter sido Saramago e não ele o autor de "O ano da morte de Ricardo Reis" e a impertinência do brasileiro Autran Dourado em criticar o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Por outro lado, no livro fala-se muito dos afetos. A relação de amor com sua esposa Pilar del Río está fartamente documentada (é com doçura que Saramago reconhece que, sem ela, não teria se tornado o homem e o escritor que foi), bem como a amizade com autores (Jorge Amado e Eduardo Lourenço, por exemplo) e pessoas comuns (como os cunhados Jávier e Maria).



Além disso, os seus diários são eivados de reflexões, sobre todos os assuntos possíveis, profundas e tocantes, como apenas o autor português foi capaz de fazer. Por isso, posto aqui um fragmento sobre a memória e suas responsabilidades, elementos importantíssimos e que ocupavam um lugar central nas preocupações do Saramago escritor e também do Saramago homem público. Por um grato acaso, o texto foi escrito em 28 de fevereiro, data do meu aniversário. Boa coincidência, não?



28 de fevereiro de 1994.



"Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir".



(p. 237)




Do Jorge.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Poesia e canção




Olá!




O título deste post poderia sugerir um texto longo sobre as infinitas relações entre poesia e canção popular. Não se esqueçam que me debruço sobre este assunto há quase uma década e que escrevi tese sobre o caso específico de Caetano Veloso. Mas não será assim. O que me levou a pensar no conluio entre verso e música, nesta tarde de um inaudito azul (e é ainda agosto) foi um entrevista que acabo de ver com o Ney Matogrosso, ao programa do Domingos Oliveira e da Priscila Rozembaum no Canal Brasil. Em certa altura do papo, Domingos faz uma referência à célebre definição de Fernando Pessoa, sobre o assunto. Diz o poeta português que "A canção é uma poesia ajudada". Acho que a frase cai perfeitamente ao tipo de interpretação que o Ney, não sendo um compositor, dá às canções que escolhe (e bem as escolhe) e canta. Mas ela cabe também como síntese dessa ideia, que ferrenhamente defendo, de que a canção popular é uma forma de poesia.




Do Jorge.

domingo, 14 de agosto de 2011

Ainda sobre a página em branco




Olá!



Sei que sou um sujeito vidrado em temas recorrentes, as coisas ficam em mim e vão tomando mil formas. É só ler esse blog. Quando entro num assunto, custo a sair dele. E, nesses dias, ando pensando muito em Caetano e na folha em branco, na música dele e na inspiração perdida. A folha em branco é um horror, seja folha mesmo ou a tela em branco, com seu brilho e seu vazio. Por isso hoje posto um texto do Caê que trata justamente da impossibilidade de escrever e sua dor, "Minhas lágrimas", canção que saiu no disco "Cê", de pegada indie mas com letras absolutamente fantásticas. Como essa. Vá lá:




MINHAS LÁGRIMAS




Desolação de Los Angeles

A Baixa Califórnia e uns desertos ilhados

por um Pacífico turvo

A asa do avião,

o tapete cor de poeira de dentro do avião

Nada serve de chão

onde caiam minhas lágrimas.

(Caetano Veloso)




Do Jorge.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O poema perdido



Olá!



Perdi um poema. Não um dos que habitam os muitos livros da minha biblioteca ou de qualquer outra. Não um daqueles que, uma vez ouvidos de relance numa récita, guardei indelével na caixa da memória. Perdi um poema meu. Um poema que ainda não nascera, nem sei agora se um dia nascerá. Dele ficou apenas um verso, "a pedra e seu / ancestral chamariz de mineral". Hoje acordei com ele, ecoando. Animei-me durante a manhã, expectante, é como sempre faço quando um poema quer nascer. Ele vai-se construindo, verso a verso, em mim, até que quando me sento diante do computador, erijo o poema inteiro. E é uma alegria como poucas a que experimento nessas horas, algo perto do amor, algo perto do êxtase de Santa Teresa d'Ávila, algo perto da cristalina nota de uma trombeta angelical. Mas não foi assim, hoje. Hoje, deu-se o aborto do poema. Perdeu-se, como perde-se uma parede construída com tijolos mínimos e ainda não inteiramente fortes. O poema diluiu-se em mim, dissolveu-se entre as minhas entranhas, não quis mostrar-se. E é um desespero como poucos o que experimento nessas horas, algo perto da treva da noite, como a pungente dor ou como o som de um trise lamento. Perder um poema é como perder-se num imenso labirinto, perdida também a saída e a possibilidade de escapar. O poema emparedou-me. Estou triste como a morte.

E o consolo, se consolo há, reside na poesia, paradoxalmente. Na poesia alheia, aquela que, pela via contrária do meu poema, rompeu as barreiras e veio dar-se à luz. Por isso, hoje posto um poema-consolo, para mim, talvez para aqueles que, como eu, perderam também um poema. E é Drummond quem, do alto de sua simplicidade poética, quem consola, explicando que, ao contrário do que pensamos, é com as palavras que se escreve o poema. Não forces teu sentimentos para tentar, em vão, traduzi-los no verso, diz o poeta. Eles nascerão das palavras. Das palavras virão e abarcarão tudo, até teus sentimentos. Até a tristeza e a dor de perder, como a um filho, um poema.



PROCURA DA POESIA


Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não

contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à

efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro

são indiferentes.

Nem me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.




Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo

das casas.

Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas

junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza

nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

A poesia (não tires poesia das coisas)

elide sujeito e objeto.




Não dramatizes, não invoques,

não indagues. Não percas tempo em mentir.

Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família

desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.



Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.



Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.



Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?



Repara:

ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


(Carlos Drummond de Andrade)




Do Jorge.


terça-feira, 9 de agosto de 2011

Senhor do tempo


Olá!



Ainda sobre o signo de Caetano Veloso, hoje escrevo sobre um disco que acabou de sair, de uma cantora pouco conhecida, por uma gravadora também obscura, ao menos para a maioria. Trata-se de "Senhor do tempo - as canções raras de Caetano Veloso", de Cláudia (que, antes, assinava o nome com "y"), uma dessas raras vozes femininas, de emissão delicada e perfeita, afinada como poucas das nossas cantoras. Claudia gravou quase duas dezenas de discos ao longo de sua carreira, iniciada nos anos 60 e, desde há muito, andava sumida do mercado fonográfico, até receber, em 2010, o convite do DJ Zé Pedro, proprietário da gravadora Joia Moderna, para fazer um songbook inteiramente dedicado ao labo b da obra de Caetano Veloso.


E o resultado é este maravilhoso disco que agora ouço, o tenho ouvido desde que o recebi, semana passada. A voz de Claudia, do alto de seus mais de 60 anos, soa cristalina o tempo inteiro. Alcança notas altíssimas, como em "Menino deus", mantem-se firme na segunda e veloz parte de "As cinco pontas de uma estrela" e é categoricamente dramática em "José", uma canção sobre o emparedamento do homem e que, talvez, foi a minha maior alegria ao ouvir o disco. Aliás, sobre o repertório, ao dizer que se trata do lado b da obra do baiano, refiro-me, certamente, à canções que são pouco ou nada ouvidas, grande parte delas não gravadas nem mesmo pelo próprio Caetano. E é aí que reside a finura de Claudia na escolha de cada uma delas, como uma espécie de pescadora de pérolas, fisgando cada canção que, depois, fisgará também o ouvinte. Comoventes interpretações atravessam o disco, como "Naquela estação" (que, talvez, seja a menos obscura das canções, já que ganhou, nos anos 90, uma versão da Adriana Calcanhotto) ou "Senhor do tempo". Também ganham nova vida canções que, ao longo do tempo, haviam ganhado esparsas versões, como "Louco por você", "O samba em paz" e "Pele". Todas coerentemente costuradas pela voz e pelo brilho de Clauda, essa grande cantora que o Brasil precisa redescobrir.


Como texto do dia, ainda no embalo do aniversário do Caê, posto a letra de "Duas manhãs", canção que fecha o disco e que diz, metáfora para a própria grandeza do disco, "Fim de noite, esta manhã / muito mais que amanhecer":



DUAS MANHÃS



A clareza da manhã

chega devagar

feita de muitos azuis

Solta em gotas no ar

molhando as coisas de luz


Tudo nasce na manhã

a cidade vai cantar

nesse azul de muita cor

Acordei para te esperar

novo para o meu amor


Mas que noite é essa manhã

em que a noite vai morrer?

E o azul que vem no ar

vem mais água apagar

que um um novo dia trazer


Fim de noite, esta manhã

muito mais que amanhecer

As estrelas vão sumir

Vou deitar para não dormir

e você vai me esquecer



Fim de noite, esta manhã

muito mais que amanhecer.



(Caetano Veloso)



Do Jorge.