terça-feira, 29 de maio de 2012

Ana C.




Olá,


A tarde de 29 de outubro de 1983 foi fatal para a poeta carioca Ana Cristina Cesar. Passando por uma violenta depressão, Ana C., como era chamada, sai do banheiro e, acometida por uma violenta crise, se atira da janela do sétimo andar do apartamento dos pais, no Rio. Tinha apenas 31 anos. 

Belíssima, inteligentíssima (tinha acabado de concluir seu mestrado em Tradução Literária pela Universidade de Essex, na Inglaterra), era uma das maiores representantes da poesia marginal, movimento surgido na década de 70 e que, antenado aos valores da contracultura e da contestação ao establishment, projetou nomes como Cacaso, Chacal e Armando Freitas Filho. Minto. Ana C. não era apenas uma das maiores poetas da geração marginal. Era uma das maiores poetas brasileiras.

Ironicamente, publicou apenas um livro em vida (estou, claro, excluindo o material publicado via mimeógrafo, marca registrada da geração marginal, pelos 70 a fora), "A teus pés". Como muito já se disse, este livro (recorte de poemas, páginas em prosa, fragmentos de diário...) é um retrato de uma geração achatada entre o peso da ditadura militar e a possibilidade de abertura (não apenas no sentido político) libertária que se anunciava. A poesia de Ana Cristina Cesar tem, pois, a urgência de um grito, o grito, talvez, que ela emitiu ao cair do sétimo andar. O grito que ecoa, forte no tempo, através das páginas de  "A teus pés". Dele, o poema de hoje:


SÁBADO DE ALELUIA


Escuta, Judas.
Antes que você parta pro teu baile.
A morte nos absorve inteiramente. 
Tudo é aconchego árido.
Cheiro eterno de Proderm.
Mesa posta, e as garras da vontade.
A gana de procurar um por um
e pronunciar o escândalo.
Falar sem ser ouvida.
Desfraldar pendengas: te desejo.
Indiferença fanática ao ainda não.

(IN: "A teus pés", p. 78)


Do Jorge.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Quem tem medo de James Joyce?


Olá!


De Virginia Woolf já perdemos, mas será que estamos preparados para James Joyce? Escritor-monumento, autor daquela que é considerada a mais "ilegível" das obras da literatura ocidental, "Finnegan's wake", Joyce praticamente reinventou (porque, antes, Shakespeare havia inventado) a língua inglesa, criando vocábulos e construções linguísticas novas (e revolucionárias) para o idioma do bardo. Tornou-se ele próprio seu novo bardo, moderno, arrojado, repleto de novidade. Por tudo isso, Joyce é o autor de que mais tenho medo.

Mas estou disposto a perdê-lo. Digo isto porque na semana passada, a Companhia das Letras lançou uma nova tradução da obra mais conhecida de Joyce, "Ulysses". Saudado como moderna entre os modernos, o  romance conta a história de Leopold Bloom em um dia de sua vida, 16 de junho de 1904, em Dublin, capital irlandesa. Tal como o herói mítico grego, ele tem que atravessar mil e um percalços até retornar para casa no fim do dia, para os braços de sua "penélope", Molly. Dessa vez, o livro foi vertido do inglês pelo professor de filologia da UFPR Caetano Galindo. É a terceira vez que o livro é traduzido aqui. A primeira (e elogiadíssima) tradução foi feita pelo filólogo Antonio Houaiss na década de 60. Na ocasião, o próprio Houaiss disse que a obra era, de certo modo, inesgotável e que mereceria no futuro outras traduções. Sua profecia só se cumpriu décadas depois, quando, em 2005, a professora da UFRJ Bernardina da Silva Pinheiro lançou, pela Objetiva, a sua tradução de "Ulisses" (sem o y original). Saudada pela crítica como "superior" à de Houaiss, foi responsável pela reaproximação do público brasileiro ao romance. E agora, surge a tradução de Galindo, já apontada como "definitiva".

Quem me vê falando assim do romance deve supor que já o li diversas vezes. Engana-se. Confesso que nunca li "Ulysses". Dele, conheço a história (o enredo, quase banal) e trechos esparsos (necessários para qualquer professor e estudioso de literatura que se preze). Mas nunca o atravessei de fora a fora. A tradução de Houaiss (que é a que tenho) é, reconheço, bastante boa, mas empolada demais. Ele não capta a inventividade joyceana em sua plenitude. Porque o barato de livro é justamente o texto. A revolução de "Ulysses" reside justamente na subversão que o autor faz da linguagem, das novas roupagens com que Joyce veste o idioma inglês (e a linguagem literária universal). De fato, pós-Joyce, ninguém mais escreveu como ele, ninguém também foi capaz de escapar de sua influência. Por isso, quando saiu a versão de Bernardina, não tive ânimo de enfrentar o livro. 

Agora, no entanto, o livro ganha uma versão de respeito. Caetano Galindo é um profundo conhecedor de Joyce, como Houaiss era da língua inglesa. E é justamente essa a diferença. Enquanto o filólogo era perito no idioma, Galindo, pelos trechos disponíveis na internet, foi capaz de traduzir o "texto" do irlandês. Seu trabalho durou uma década e, para tanto, Galindo fez várias viagens a Dublin, para mergulhar mesmo no clima joyceano. Por isso, prometo agora: vou ler o "Ulysses", dessa vez inteiro. O livro já está encomendado e me darei a essa árdua tarefa. Digo árdua pois trata-se de mais de mil páginas. Mas acho que, agora, poderei fazer essa longa viagem com mais prazer.

Deixo, para que vocês se animem como eu, um trecho da nova tradução do livro, que está disponível no site da Companhia das Letras. A eles, o crédito.



"Ele a observou que vertia na medida e dali para a jarra o gordo leite branco, não seu. Peitos velhos mirrados. Verteu  de novo uma medida e uma quebra. secreta e velha, entrara vinda de um mundo matinal, quem sabe uma mensageira. louvava a virtude do leite, vertendo. Agachada ao lado de uma vaca paciente na aurora do campo opulento, uma bruxa em seu cogumelo, velozes os dedos enrugados nas tetas que espirravam. Mugiam em volta dela, sua conhecida, gado sedosorvalhado. seda da grei e pobre velhinha, nomes que ganhara nos tempos antigos. Uma velhusca errante, forma rebaixada de um imortal servindo seu conquistador e seu alegre traidor, ambos adúlteros seus,  ela, núncio da manhã secreta. servir ou vergastar, ele não sabia dizer qual: mas desdenhava implorar seu favor."




(IN: JOYCE, James. "Ulysses". Trad. de Caetano W. Galindo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 111) 




Do Jorge.

        


quarta-feira, 16 de maio de 2012

Voltei a postar!

Olá!


Ah, as referências! Pensando em como voltar ao blog, me lembrei não sei por que de um show do Chico Buarque em que ele começa com a canção "Voltei a cantar", que pertenceu ao repertório do grande (e esquecido) Jorge Veiga, cantor dos anos 30 que vivia anunciando a aposentadoria, mas que acabava sempre "voltando a cantar". Achei o título perfeito para essa volta. Afinal, voltei a postar.

O certo é que voltei, sempre volto, sempre voltarei. Em carne ou em espírito, tanto faz. O cotidiano? Continua o mesmo, as aulas, as obrigações, as leituras, ô, ladainha! Mas não por isso sumi. Sumi porque sumi. Oras. É como disse o Campos de Carvalho, explicando a um repórter porque ficou quarenta anos sem publicar um livro novo: "Estava feliz demais para escrever". Não que agora esteja infeliz. Aliás, sou o rei dos céticos e não acredito em felicidade-infelicidade. São estados que momentâneos, não coisas permanentes, como pensam muitos. É que não queria escrever, quis viver. Agora. Agora quero escrever, simples assim. Estágios d'alma, diria eu se fosse um poeta romântico do século XIX, tuberculoso e infeliz. Mas não sou. Por isso, tento justificar essa compulsão por escrever, porque o que faço aqui (que é o mesmo que fazem aqueles que publicam livros: abrir-se) é uma compulsão, não há dúvida. Nem tente compreender, porque aí entramos no terreno de Freud-Jung-Lacan, a chapa do ego vai esquentar!... falava mesmo sobre o que? Sei lá. Aliás, não sei por que, mas agora ouvi a vozinha do Caetano cantando no meu ouvido, "esse papo já tá qualquer coisa, / você já tá pra lá de Marrakesh"...

Como prova do meu retorno, posto o poema do dia (me refiro, é claro, ao dia em que me dá na telha escrever), bem ao espírito do que disse hoje. Trata-se de "Guardar", do Antonio Cícero, irmão da Marina Lima e parceiro seu em muitas canções. Um puta poeta, com o perdão do cacófato e do chulismo, que dá aqui uma possível explicação para a  compulsão de que tanto falo. Ou não.




GUARDAR



Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.

Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.


(IN: Guardar, 1997. p. 337)


Do Jorge.