segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Consolo




Olá,






Já disse isso aqui, mas sempre que preciso de algum consolo, procuro Adélia Prado. Ah, como respiro melhor passando os olhos pelas páginas do meu ensebado Poesia reunida, comprado numa tarde chuvosa de julho, numa pequena livraria na Praça da Sé - e que, se um dia perder todos os meus livros, será o que mais falta me fará. Deparar-me com coisas do tipo "Nós não somos capazes da verdade, / os antinaturais por natureza" ou "A poesia é pura compaixão" é receber uma generosa lufada de ar bem no meio da cara, uma espécie de sobrevida, uma luz salvífica mesmo.



Se não eu, ao menos a tarde foi salva. Pela Adélia e por sua tão pura beleza. Por isso, deixa-me compartilhá-la, passar a tocha adiante:






EM PORTUGUÊS


Aranha, cortiça, pérola

e mais quatro que não falo
são palavras perfeitas.
Morrer é inexcedível.
Deus não tem peso algum.
Borboleta é atelobrob,
um sabão no tacho fervendo.
Tomara estas estranhezas
sejam psicologismos,
corruptelas devidas
ao pecado original.
Palavras, quero-as antes como coisas.
Minha cabeça se cansa
                         neste discurso infeliz.
Jonathan me falou:
           ‘Já tomou seu iogurte?’
Que doçura cobriu-me, que conforto!
As línguas são imperfeitas
                       pra que os poemas existam
e eu pergunte donde vêm
                os insetos alados e este afeto,
seu braço roçando o meu.

(Adélia Prado, Poesia reunida, p. 380)


Do Jorge.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Tema e variações



Olá,



Sou um pianista frustrado. Um dia projetei um carreira linda, recitais e gravações, masterclasses e coisa e tal. Tudo foi de roldão no tempo. Sem neuroses, claro (e me contradigo quando digo que sou um pianista frustrado, os paradoxos). Elaborando melhor o passado: sou um pianista frustrado, mas resolvido. Melhor, não?


*


Minha estupidez pianística parou em Bach, preciso dizer. Bach sempre foi uma pedreira para mim (e para onze em cada dez pianistas frustrados, resolvidos ou não). E para mim, vencer Bach era tornar-se, de fato, pianista. Parei nele (e, elaborando agora o passado [Adorno], quem sabe não tenha sido por isso que enterrei no quintal o desejo de ser concertista e fui me meter com a dupla Letras-História?) e, bom, contentei-me em ser apenas ouvinte. Claro, de vez em quando batuco no piano coisas que mal ou bem ficaram de Bach em mim, as Invenções a duas ou três vozes, alguns dos Prelúdios do Cravo Bem Temperado, ou mesmo pecinhas fáceis, como a deliciosa Musette. Mas, ai de mim, toco mal pra burro. Decididamente, foi muito bom para os ouvidos alheios que eu me tornasse esse pianista frustrado-resolvido que sou.





Thomas Bernhard foi um escritor que descobri pela música, por uma porta difusamente aberta quando pesquisava, nos idos de 2004 (sei a data porque está grifada na contra-capa de O náufrago, de que falo já já), a respeito das duas gravações das Variações Goldberg, de Bach, feitas por Glenn Gould. 


*


Glenn Gould. Há um outro texto sobre ele aqui no blog. Na hagiografia dos pianistas, Gould é para mim um dos membros da santíssima e imaculadíssima trindade: Gould, Martha Argerich e Nelson Freire, nesta ordem. Há outros santinhos que curto, mas esses três, deuses. E Gould, por uma minúscula diferença, está na frente (talvez o mindinho dois milímetros maior que o do Argerich, fazendo seu contraponto bachiano soar mais claro que o da argentina). Ouvi, ouço e ouvirei Glenn Gould a vida inteira. E seu Bach, todo mundo está cabeludo de saber, é divino, clio, erato, euterpe... é mesmo não-deste-mundo. Mas mesmo entre o Bach perfeito de Gould, há o Bach que ultrapassou a perfeição. Um não, dois. Falo, claro, das duas gravações que o pianista canadense fez das Variações Goldberg, em 1955 e 1981, respectivamente. Eu as ouvi em ordem inversa, por uma questão puramente casual. Estudava piano e meu antigo professor, outro idólatra de Gould, emprestou-me um VHS com um mini-documentário e a filmagem da gravação das Variações em 1981. Fiquei chapado, acachapado, mareado só de ouvir a sequência inicial sol - sol - lá si lá - sol fá mi ré - sol sol, da famosa ária tema. Ninguém nunca tocou as Variações como aquele Gould de 81. Quer dizer, ninguém exceto o Gould de 1955, que fui ouvir na ordem reversa, em 2004 quando comprei o disco (cd) com a gravação e, nas pesquisas prévias, descobri o romance O náufrago, do Bernhard.


*


Gould, Werthmeier e o narrador (inominado), personagens do romance de Thomas Bernhard, são alunos do Conservatório de Salzburgo, nos idos de 1953. Um certo dia, os três vão a uma aula (de Horowitz) e Gould, como quem não quer nada, senta-se ao piano e inicia o tal  sol - lá si lá - sol fá mi ré - sol sol da abertura das Variações Goldberg, que irá antologicamente gravar dois anos depois. Isso é suficiente para provocar um turbilhão na vida dos outros dois amigos. Wertheimer comete suicídio anos depois, ainda sob os ecos daquela tão apaixonada quanto (para ele, para sua mediocridade) insuportável interpretação do Gould. O narrador, o "náufrago" do título, tenta sobreviver para narrar (quando da narração do livro, tanto Wertheimer quanto Gould já estão mortos), sobreviver para entender, sobreviver para naufragar na memória daquelas 30 variações, mais a ária já referida e repetida ao final da peça. O livro de Bernhard (um escritor que preciso ler mais) é de uma prosa exasperada, como é já lugar comum dizer (e sempre se diz), onde toda a falta de sentido diante da vida é expressa por esse narrador aniquilado pela beleza do Bach de Gould. É como se ele dissesse: depois de ouvir isso, viver para que mais?


*


Li o livro de Benhard em 2004. Ouvi as Variações Goldeberg (versão de 1981) nos anos 90 (talvez 97 ou 98). Ouvi a segunda versão (1955) também em 2004. Estou em 2014 e sou um pianista frustrado resolvido. Não, não me matarei por Bach (e, espero, por nada nesse mundo). Também não posso dizer que sou um náufrago, como o narrador do romance, que não podia sequer ouvir Bach com Gould. Eu sou justamente o contrário, penso agora. Preciso viver para ouvir. Ouvir, nesse caso, não como sinal de naufrágio, mas de boia salvadora. Afinal, sou um pianista frustrado. E, agora mais que nunca, resolvido.



Do Jorge.



(Abaixo, os links para os vídeos com as versões das Variações Goldberg com Glenn Gould, primeiro a de 1981, depois a de 1955). 






quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Um poderoso nome



Olá,



Esta é a época do ano em que me lembro dele com mais frequência, embora ele esteja comigo desde sempre, desde quando o conheci por seus textos. Falo de Ferreira Gullar, esse extraordinário (porque nesse caso os adjetivos são sempre insuficientes) poeta brasileiro e que, há anos, é minha aposta (talvez correto seria dizer desejo) para o Prêmio Nobel de Literatura, que será anunciado em Estocolmo daqui a 29 dias. 

Estamos na época das apostas e, como já é de lei, dou uma bisbilhotada diária no site londrino Ladbrokes, onde hoje, 10 de setembro (e, coincidentemente aniversário de Gullar), o nome do romancista japonês Haruki Murakami encabeça a lista de favoritos ao Nobel, aliás como nos últimos três anos. O nome do poeta brasileiro não consta na lista, ainda. Na verdade, ele costuma aparecer nas últimas semanas que antecedem ao prêmio (no ano passado, só apareceu no finzinho do páreo). De toda forma, ele é sempre considerado um dos possíveis vencedores. E se recebesse o Nobel, seria mais que merecido. Se o recebesse, na verdade, seria um grande justiça para a literatura do Brasil, preterida desde sempre - lembremos que João Cabral de Melo Neto, Jorge de Lima e Autran Dourado, outros nomes já cogitados pela Academia Sueca, se foram sem o prêmio.

Mas, sobretudo, se o recebesse, seria o reconhecimento de uma das maiores dicções poéticas da América Latina (que nada!, de atualidade mesmo). Não sou um estudioso do Gullar, preciso dizer, sou apenas um leitor fiel. Não tenho juízos críticos, elucubrações teóricas ou qualquer coisa que o valha para classificar sua poesia. Quer dizer, até tenho, mas eles são tão contaminadas pelo tamanho apreço (amor, por que não?) que tenho por seus poemas, que não é nem justo expressá-los. Por isso fico com esta justificativa para a atribuição do prêmio: ele é mesmo muito bom poeta!

E como hoje pensei nele (e como hoje ele faz 84 anos), nada mais apropriado que saudá-lo em nome da beleza, felicitá-lo e torcer para que essa mesma beleza convença por fim os suecos, fazendo-nos ouvir em 09 de outubro próximo, no salão da Bolsa de Valores de Estocolmo, seu poderoso nome.



QUESTÃO PESSOAL


Não interessa
a ninguém
(talvez)
isso
de que já falei
que o poema se nega
a ser poema.
Não interessa
talvez
porque se a poesia
é universal
o poema é
uma questão pessoal
(de mim comigo
de voz comigo
de voz
que não quer voar
não quer
saltar
acima
do rio escuro,
prateada!)
essa palavra avesso esse
verso
espesso mais que pêlo
essa pele-
palavra
que envolve a voz
e voa ao revés
tão rente a meu corpo
feito um sopro –
o poema
que em si mesmo se solve
(em seu mel).


(Ferreira Gullar, Barulhos, 1987, p. 57-58)



Do Jorge.


segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Livro



Olá,


"Eu fiz um livro, mas oh, meu Deus, / não perdi a poesia", escreveu Adélia Prado num poema de seu primeiro livro, Bagagem, de 1976. Aliás, o exemplo de Adélia (nisso e em muitas outras coisas) sempre me vem quando penso no poeta que começa. Começa não, porque não há estreia no verso ("Onde será que isso começa?", ô Caetano, ah, as referências...). O quero dizer é que a poeta de Divinópolis é sempre um exemplo do que chamo de "paciência poética". Saber esperar, enfim. Porque quando Bagagem apareceu, Adélia tinha já quarenta anos. Nessa altura da vida, todo mundo perguntava, "Quando vai sair um livro?", "Você não escreve, cadê seu livro?", "Os poemas saem ou não saem?", e coisas do gênero. Porque todo mundo sabia que ela escrevia, mas ela sabia mais que os outros que não escrevia ainda. Que o que saía da pena (essa tão arcaica quanto irresistível imagem) não era ela. Era imitação, aliás como os primeiros textos de todos nós que tenteamos esse ofício (e como a própria Adélia diria tempos depois, num outro poema: "O jovem poeta, fedendo a suicídio e glória, / rouba de todos nós e nem assina"). Até que começaram a aparecer uns poemas que não se pareciam com ninguém. Que não eram a cara de drummond-bandeira-cabral-vinícius. Que pareciam saídos de um outro lugar ainda não conhecido. Esses poemas eram dela!, deu-se assim a descoberta. E saiu o livro. E a poeta, talvez agora posso dizer, estreou.

Longe de mim querer ser Adélia Prado (fulminai-o, homem vil e desprezível, recoberto de vaidade, talvez diria ela num poema se soubesse que esse texto manco tenta ligá-la ao que quero dizer). Longe de mim dizer que a minha estreia é de longe a sombra do que foi o aparecimento de Adélia Prado no pedaço que chamamos de nossa literatura. Longe, enfim. Mas, nesta noite em que penso no livro que fiz, os versos dela me vieram via essa coisa tão seletiva quanto cruel chamada memória. Impossível também não pensar que, sim, fiz um livro e que não perdi a poesia. Peço vênia, portanto: o poeta que sou também estreia.

O livro, como muitos já sabem, chama-se Calendário. Quando ele foi selecionado para a publicação, via edital da Secult, fiquei meio besta, pateta mesmo. Não processei a coisa e fui lá assinar papéis, ceder direitos, receber orientações e coisa e tal - e, claro, receber o prêmio que me coube. Depois a coisa foi assentando em mim: Um livro!, era a frase que me vinha de quando em vez, sempre com um sobressalto. Mas aí o tempo serenou a coisa, a burocracia que envolve a edição foi amainando a potência de saber que um livro (um filho) estava por pintar. Até que recebi, semana passada, a prova final e a capa do dito cujo. Daí desabei, claro, não sou de ferro. Tudo isso que escrevi (ao menos tentei, pelo que sempre peço desculpas) aí em riba é um pouco do que venho sentido, nestes dias de setembro: fiz um livro e, como sou grato!, não perdi a poesia.

Como texto do dia, segue um poema meu (outra vênia que peço). Não, não estará em "Calendário" (sabe, tenho que esperar a cria sair para jogá-la na roda). É um dos textos novos, que estou coligindo para um segundo livro, que tem o provisório título de "As graças do corpo". Porque quando se estreia, é difícil parar.

NA ÁGUA DO QUE NÃO SE DISSE

Há diferentes vibrações
na face neutra
da água:
tanto há a límpida
e intacta
superfície da mensagem que encontra
sua igual,
como há a potência
de violentos maremotos
a repercutir o rumor de um braço
que roça o outro – e que se crispa –
ou voz de um silêncio que a tarde
atravessa
ou o gesto incompleto da mão que estanca
no adeus
e que naufraga
nesta mesma água
do que não se disse.
(Jorge Luís Verly Barbosa, 05/09/2014)


Do Jorge.

Post scriptum: A foto, claro, é a capa provisória do livro. Que tal?