segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Consolo




Olá,






Já disse isso aqui, mas sempre que preciso de algum consolo, procuro Adélia Prado. Ah, como respiro melhor passando os olhos pelas páginas do meu ensebado Poesia reunida, comprado numa tarde chuvosa de julho, numa pequena livraria na Praça da Sé - e que, se um dia perder todos os meus livros, será o que mais falta me fará. Deparar-me com coisas do tipo "Nós não somos capazes da verdade, / os antinaturais por natureza" ou "A poesia é pura compaixão" é receber uma generosa lufada de ar bem no meio da cara, uma espécie de sobrevida, uma luz salvífica mesmo.



Se não eu, ao menos a tarde foi salva. Pela Adélia e por sua tão pura beleza. Por isso, deixa-me compartilhá-la, passar a tocha adiante:






EM PORTUGUÊS


Aranha, cortiça, pérola

e mais quatro que não falo
são palavras perfeitas.
Morrer é inexcedível.
Deus não tem peso algum.
Borboleta é atelobrob,
um sabão no tacho fervendo.
Tomara estas estranhezas
sejam psicologismos,
corruptelas devidas
ao pecado original.
Palavras, quero-as antes como coisas.
Minha cabeça se cansa
                         neste discurso infeliz.
Jonathan me falou:
           ‘Já tomou seu iogurte?’
Que doçura cobriu-me, que conforto!
As línguas são imperfeitas
                       pra que os poemas existam
e eu pergunte donde vêm
                os insetos alados e este afeto,
seu braço roçando o meu.

(Adélia Prado, Poesia reunida, p. 380)


Do Jorge.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Tema e variações



Olá,



Sou um pianista frustrado. Um dia projetei um carreira linda, recitais e gravações, masterclasses e coisa e tal. Tudo foi de roldão no tempo. Sem neuroses, claro (e me contradigo quando digo que sou um pianista frustrado, os paradoxos). Elaborando melhor o passado: sou um pianista frustrado, mas resolvido. Melhor, não?


*


Minha estupidez pianística parou em Bach, preciso dizer. Bach sempre foi uma pedreira para mim (e para onze em cada dez pianistas frustrados, resolvidos ou não). E para mim, vencer Bach era tornar-se, de fato, pianista. Parei nele (e, elaborando agora o passado [Adorno], quem sabe não tenha sido por isso que enterrei no quintal o desejo de ser concertista e fui me meter com a dupla Letras-História?) e, bom, contentei-me em ser apenas ouvinte. Claro, de vez em quando batuco no piano coisas que mal ou bem ficaram de Bach em mim, as Invenções a duas ou três vozes, alguns dos Prelúdios do Cravo Bem Temperado, ou mesmo pecinhas fáceis, como a deliciosa Musette. Mas, ai de mim, toco mal pra burro. Decididamente, foi muito bom para os ouvidos alheios que eu me tornasse esse pianista frustrado-resolvido que sou.





Thomas Bernhard foi um escritor que descobri pela música, por uma porta difusamente aberta quando pesquisava, nos idos de 2004 (sei a data porque está grifada na contra-capa de O náufrago, de que falo já já), a respeito das duas gravações das Variações Goldberg, de Bach, feitas por Glenn Gould. 


*


Glenn Gould. Há um outro texto sobre ele aqui no blog. Na hagiografia dos pianistas, Gould é para mim um dos membros da santíssima e imaculadíssima trindade: Gould, Martha Argerich e Nelson Freire, nesta ordem. Há outros santinhos que curto, mas esses três, deuses. E Gould, por uma minúscula diferença, está na frente (talvez o mindinho dois milímetros maior que o do Argerich, fazendo seu contraponto bachiano soar mais claro que o da argentina). Ouvi, ouço e ouvirei Glenn Gould a vida inteira. E seu Bach, todo mundo está cabeludo de saber, é divino, clio, erato, euterpe... é mesmo não-deste-mundo. Mas mesmo entre o Bach perfeito de Gould, há o Bach que ultrapassou a perfeição. Um não, dois. Falo, claro, das duas gravações que o pianista canadense fez das Variações Goldberg, em 1955 e 1981, respectivamente. Eu as ouvi em ordem inversa, por uma questão puramente casual. Estudava piano e meu antigo professor, outro idólatra de Gould, emprestou-me um VHS com um mini-documentário e a filmagem da gravação das Variações em 1981. Fiquei chapado, acachapado, mareado só de ouvir a sequência inicial sol - sol - lá si lá - sol fá mi ré - sol sol, da famosa ária tema. Ninguém nunca tocou as Variações como aquele Gould de 81. Quer dizer, ninguém exceto o Gould de 1955, que fui ouvir na ordem reversa, em 2004 quando comprei o disco (cd) com a gravação e, nas pesquisas prévias, descobri o romance O náufrago, do Bernhard.


*


Gould, Werthmeier e o narrador (inominado), personagens do romance de Thomas Bernhard, são alunos do Conservatório de Salzburgo, nos idos de 1953. Um certo dia, os três vão a uma aula (de Horowitz) e Gould, como quem não quer nada, senta-se ao piano e inicia o tal  sol - lá si lá - sol fá mi ré - sol sol da abertura das Variações Goldberg, que irá antologicamente gravar dois anos depois. Isso é suficiente para provocar um turbilhão na vida dos outros dois amigos. Wertheimer comete suicídio anos depois, ainda sob os ecos daquela tão apaixonada quanto (para ele, para sua mediocridade) insuportável interpretação do Gould. O narrador, o "náufrago" do título, tenta sobreviver para narrar (quando da narração do livro, tanto Wertheimer quanto Gould já estão mortos), sobreviver para entender, sobreviver para naufragar na memória daquelas 30 variações, mais a ária já referida e repetida ao final da peça. O livro de Bernhard (um escritor que preciso ler mais) é de uma prosa exasperada, como é já lugar comum dizer (e sempre se diz), onde toda a falta de sentido diante da vida é expressa por esse narrador aniquilado pela beleza do Bach de Gould. É como se ele dissesse: depois de ouvir isso, viver para que mais?


*


Li o livro de Benhard em 2004. Ouvi as Variações Goldeberg (versão de 1981) nos anos 90 (talvez 97 ou 98). Ouvi a segunda versão (1955) também em 2004. Estou em 2014 e sou um pianista frustrado resolvido. Não, não me matarei por Bach (e, espero, por nada nesse mundo). Também não posso dizer que sou um náufrago, como o narrador do romance, que não podia sequer ouvir Bach com Gould. Eu sou justamente o contrário, penso agora. Preciso viver para ouvir. Ouvir, nesse caso, não como sinal de naufrágio, mas de boia salvadora. Afinal, sou um pianista frustrado. E, agora mais que nunca, resolvido.



Do Jorge.



(Abaixo, os links para os vídeos com as versões das Variações Goldberg com Glenn Gould, primeiro a de 1981, depois a de 1955). 






quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Um poderoso nome



Olá,



Esta é a época do ano em que me lembro dele com mais frequência, embora ele esteja comigo desde sempre, desde quando o conheci por seus textos. Falo de Ferreira Gullar, esse extraordinário (porque nesse caso os adjetivos são sempre insuficientes) poeta brasileiro e que, há anos, é minha aposta (talvez correto seria dizer desejo) para o Prêmio Nobel de Literatura, que será anunciado em Estocolmo daqui a 29 dias. 

Estamos na época das apostas e, como já é de lei, dou uma bisbilhotada diária no site londrino Ladbrokes, onde hoje, 10 de setembro (e, coincidentemente aniversário de Gullar), o nome do romancista japonês Haruki Murakami encabeça a lista de favoritos ao Nobel, aliás como nos últimos três anos. O nome do poeta brasileiro não consta na lista, ainda. Na verdade, ele costuma aparecer nas últimas semanas que antecedem ao prêmio (no ano passado, só apareceu no finzinho do páreo). De toda forma, ele é sempre considerado um dos possíveis vencedores. E se recebesse o Nobel, seria mais que merecido. Se o recebesse, na verdade, seria um grande justiça para a literatura do Brasil, preterida desde sempre - lembremos que João Cabral de Melo Neto, Jorge de Lima e Autran Dourado, outros nomes já cogitados pela Academia Sueca, se foram sem o prêmio.

Mas, sobretudo, se o recebesse, seria o reconhecimento de uma das maiores dicções poéticas da América Latina (que nada!, de atualidade mesmo). Não sou um estudioso do Gullar, preciso dizer, sou apenas um leitor fiel. Não tenho juízos críticos, elucubrações teóricas ou qualquer coisa que o valha para classificar sua poesia. Quer dizer, até tenho, mas eles são tão contaminadas pelo tamanho apreço (amor, por que não?) que tenho por seus poemas, que não é nem justo expressá-los. Por isso fico com esta justificativa para a atribuição do prêmio: ele é mesmo muito bom poeta!

E como hoje pensei nele (e como hoje ele faz 84 anos), nada mais apropriado que saudá-lo em nome da beleza, felicitá-lo e torcer para que essa mesma beleza convença por fim os suecos, fazendo-nos ouvir em 09 de outubro próximo, no salão da Bolsa de Valores de Estocolmo, seu poderoso nome.



QUESTÃO PESSOAL


Não interessa
a ninguém
(talvez)
isso
de que já falei
que o poema se nega
a ser poema.
Não interessa
talvez
porque se a poesia
é universal
o poema é
uma questão pessoal
(de mim comigo
de voz comigo
de voz
que não quer voar
não quer
saltar
acima
do rio escuro,
prateada!)
essa palavra avesso esse
verso
espesso mais que pêlo
essa pele-
palavra
que envolve a voz
e voa ao revés
tão rente a meu corpo
feito um sopro –
o poema
que em si mesmo se solve
(em seu mel).


(Ferreira Gullar, Barulhos, 1987, p. 57-58)



Do Jorge.


segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Livro



Olá,


"Eu fiz um livro, mas oh, meu Deus, / não perdi a poesia", escreveu Adélia Prado num poema de seu primeiro livro, Bagagem, de 1976. Aliás, o exemplo de Adélia (nisso e em muitas outras coisas) sempre me vem quando penso no poeta que começa. Começa não, porque não há estreia no verso ("Onde será que isso começa?", ô Caetano, ah, as referências...). O quero dizer é que a poeta de Divinópolis é sempre um exemplo do que chamo de "paciência poética". Saber esperar, enfim. Porque quando Bagagem apareceu, Adélia tinha já quarenta anos. Nessa altura da vida, todo mundo perguntava, "Quando vai sair um livro?", "Você não escreve, cadê seu livro?", "Os poemas saem ou não saem?", e coisas do gênero. Porque todo mundo sabia que ela escrevia, mas ela sabia mais que os outros que não escrevia ainda. Que o que saía da pena (essa tão arcaica quanto irresistível imagem) não era ela. Era imitação, aliás como os primeiros textos de todos nós que tenteamos esse ofício (e como a própria Adélia diria tempos depois, num outro poema: "O jovem poeta, fedendo a suicídio e glória, / rouba de todos nós e nem assina"). Até que começaram a aparecer uns poemas que não se pareciam com ninguém. Que não eram a cara de drummond-bandeira-cabral-vinícius. Que pareciam saídos de um outro lugar ainda não conhecido. Esses poemas eram dela!, deu-se assim a descoberta. E saiu o livro. E a poeta, talvez agora posso dizer, estreou.

Longe de mim querer ser Adélia Prado (fulminai-o, homem vil e desprezível, recoberto de vaidade, talvez diria ela num poema se soubesse que esse texto manco tenta ligá-la ao que quero dizer). Longe de mim dizer que a minha estreia é de longe a sombra do que foi o aparecimento de Adélia Prado no pedaço que chamamos de nossa literatura. Longe, enfim. Mas, nesta noite em que penso no livro que fiz, os versos dela me vieram via essa coisa tão seletiva quanto cruel chamada memória. Impossível também não pensar que, sim, fiz um livro e que não perdi a poesia. Peço vênia, portanto: o poeta que sou também estreia.

O livro, como muitos já sabem, chama-se Calendário. Quando ele foi selecionado para a publicação, via edital da Secult, fiquei meio besta, pateta mesmo. Não processei a coisa e fui lá assinar papéis, ceder direitos, receber orientações e coisa e tal - e, claro, receber o prêmio que me coube. Depois a coisa foi assentando em mim: Um livro!, era a frase que me vinha de quando em vez, sempre com um sobressalto. Mas aí o tempo serenou a coisa, a burocracia que envolve a edição foi amainando a potência de saber que um livro (um filho) estava por pintar. Até que recebi, semana passada, a prova final e a capa do dito cujo. Daí desabei, claro, não sou de ferro. Tudo isso que escrevi (ao menos tentei, pelo que sempre peço desculpas) aí em riba é um pouco do que venho sentido, nestes dias de setembro: fiz um livro e, como sou grato!, não perdi a poesia.

Como texto do dia, segue um poema meu (outra vênia que peço). Não, não estará em "Calendário" (sabe, tenho que esperar a cria sair para jogá-la na roda). É um dos textos novos, que estou coligindo para um segundo livro, que tem o provisório título de "As graças do corpo". Porque quando se estreia, é difícil parar.

NA ÁGUA DO QUE NÃO SE DISSE

Há diferentes vibrações
na face neutra
da água:
tanto há a límpida
e intacta
superfície da mensagem que encontra
sua igual,
como há a potência
de violentos maremotos
a repercutir o rumor de um braço
que roça o outro – e que se crispa –
ou voz de um silêncio que a tarde
atravessa
ou o gesto incompleto da mão que estanca
no adeus
e que naufraga
nesta mesma água
do que não se disse.
(Jorge Luís Verly Barbosa, 05/09/2014)


Do Jorge.

Post scriptum: A foto, claro, é a capa provisória do livro. Que tal?

terça-feira, 26 de agosto de 2014

De leituras, biografias e Foucault


Olá!


Numa ponta, Adorno (a "Máxima Muralha"); noutra, os estudos de Musicologia e Canção (grande parte deles em inglês, porque nenhuma pedreira se vence duma picaretada só): eis como estão minhas leituras nestes dias, por conta dos dois cursos que estou fazendo neste semestre. São prazeres, claro. Mas prazeres profissionais, preciso dizer, porque ligados ao que ando pensando/discutindo/escrevendo. Mas sempre encontro espaço dar uma pulada de cerca, é de lei: nesse caso, a biografia Michel Foucault: 1926-1984, escrita por Didier Eribon e publicada em 1988 (aqui, saiu pela Companhia das Letras em 1990 numa edição tão esgotada quanto preciosa [é vendida por aí, em sebos, por 150, 200 pratas] e que, felizmente, me caiu às mãos via Biblioteca Central da UFES). O livro me ganhou de cara. Sem ser foucaultiano de carteirinha (aliás, ando numa crise conceitual tão brava que nem sei mais o que cargas d'água sou em teoria), as ideias do francês sempre me interessaram: a noção de discurso e poder, de sanidade, loucura e normatização social, a função autor, ad infinitum. Vira e mexe, Foucault aparece e é sempre útil, tamanha atualidade de seu pensamento/discurso. Aliás, pensando agora no aspecto da perenidade do pensamento pós-estruturalista, talvez seja ele o que menos envelheceu, quer dizer, o que por sua palavra ainda dá conta de explicar muito do que hoje está aí.

*

Por outro lado, há o interesse (meu) quase patológico por biografias de escritores/pensadores. Outro dia, conversando com um amigo, falava um pouco de mal dessa corrente histórica que só quer compreender a realidade pela via da vida do sujeito, como se para compreender Napoleão fosse imprescindível entender como se comportavam Josephine e ele na cama. Não é isso que me interessa, a priori, nas biografias, ligar alhos e bugalhos. Conectar o pensamento à vida, entender um pela via da outra. No entanto, não posso negar que gosto pacas de biografias justamente porque elas acabam ajudando a "explicar o sujeito", se é que fui claro. E também porque me interessa, pensando naquilo que Marguerite Youcernar disse, entender que o homem de palavra é também um homem de ação. Que por detrás do que se pensou e escreveu há alguém viveu dramas, alegrias, paixões e redenções bem próximas de nós. Isso tira toda a aura do sujeito, aproxima-o da rês-do-chão. Ele fica tendo uma cara parecida com a nossa. Por isso, quando me deparei com a do Foucault, bem, foi meio que impossível resistir. 

*

Michel Foucault é comumente descrito como louco - e o livro do Eribon procura explicar como isso acabou resultado no interesse do filósofo por temas como psiquiatria e clínica (taí a História da loucura que não nos deixa mentir), além de falar bastante no discurso do "louco" (o interdito) num texto tão pequeno quanto poderoso como é A ordem do discurso. Desde muito cedo, Foucault viveu nos limites da sanidade, sendo uma criança esquiva, um adolescente absorto desse plano (e agora me pergunto, qual?), um normalien confuso e agressivo e um adulto que trabalhou nas tensões da linguagem, com se ela não desse conta (e de fato não dá) de explicar o mundo visível - e fosse, por isso, necessário, enlouquecê-la para encontrar algum tipo de exegese possível e compreensível. O tema da folie esteve no centro das preocupações foucaltianas. E foi exatamente isso que me impactou na biografia: a necessidade que ele teve em penetrar, de uma forma insidiosamente perigosa, no nervo da loucura para, de lá, buscar algum tipo de compreensão (e de dignidade, se pensarmos nesses termos, veremos muito disso na História da loucura) para o que, por muito tempo, foi tabu para a nossa sociedade. E que, mesmo com todo esse papo de humanização do tratamento psiquiátrico tão em voga em nossos dias, continua sendo. Daí a atualidade (e mais, a necessidade) de Foucault.

*

Eribon descreve, aqui e ali, a problemática relação de Foucault com a sua sexualidade. Relutante a vida inteira (do que foi acusado, algumas vezes com dureza) em assumir sua homossexualidade, ele a viveu nos "subsolos parisienses" (e em outros pelos quais transitou) e, no segredo (ao menos para o mundo) de seu apartamento da rue de Vaugirard, 8º andar, com Daniel Defert, sociólogo e seu companheiro até a morte. Aliás, Eribon é incisivo ao ligar, desde o início ao fim, a vida de Foucault ao fato de ser ele gay: desde suas crises na École Normale Supérieure, depois de noites de sexo e vergonha, até a morte prematura e dolorosa ocasionada pela Aids. O que, em suma, fez da sexualidade a sua preocupação número dois: em sua História da sexualidade, talvez numa espécie de exorcismo (ou catarse, se pensarmos no termo mais à Adorno que à Aristóteles), ele procurou apresentar, descrever e desmontar os tabus, as interdições (sempre elas) e as amarras que a sexualidade impingiu à sociedade ao longo dos tempos. 

*

Há muito mais no livro, claríssimo: a relação de Foucault com as drogas  (Mathieu Lindon, num livro que acabou de sair no Brasil, O que amar quer dizer, conta que viajou muito no apartamento de Foucault, movido a LSD e Mahler), no que ficamos sabendo que o filósofo cultivava maconha num vasinho na varanda de casa, as querelas com o poder e academia, o ativismo político, as amizades e afinidades eletivas, a chegada ao Collége de France... Depois de ler essa biografia, enfim, o filósofo agora para mim é muito mais humano: contraditório, vívido, sofrido, louco. E, mais do que nunca, continua genial.



Perdão, Godard, mas aqui o plágio é inevitável: 

"Deux ou trois choses que je sais de lui". 




Do Jorge.



terça-feira, 12 de agosto de 2014

A volta (ou Às voltas), com Silviano Santiago






Olá,


A volta é das maiores certezas da existência, tenho que confirmar já. Estar, ir e voltar, talvez o périplo arquetípico da viagem - qualquer uma, inclusive na maionese. Pois eis que aqui estou, de volta. Muita coisa aconteceu de cá para lá, de cá onde estou para lá onde terminei-comecei essa parada de blog. Resumindo tudo, uso o verso de "O homem velho", do Caetano: "Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval". Traduzindo: nasceu a Valentina (minha filha, lume destes olhos meus), continuo sem fazer filme algum, disse muita coisa por aí afora e tive um livro selecionado para a publicação. Assome-se a esta receita o fato de que voltei ao PPGL-UFES, agora na condição de doutorando (chega, porque vou achar mesmo que Narciso acha feio o que não é espelho...). O fato é que fui vivendo-lendo-escrevendo. Pronto. Mas não ponto, dessa vez. Porque sigo, claro. E isso implica dizer que de vez em quando certas coisas voltam, o eterno retorno (ô, Nietzsche!). A volta, como disse no início. Por isso o blog, que é meu espaço de exercício desse voltar - e revejo que sempre preciso explicar porque volto, o inexplicável. Sim, seu Jorge, porque a resposta é sempre simples, é sempre esta: porque é preciso. Sobretudo porque é preciso escrever. Sobre o que der. Sobre o que vier. Agora sim ponto.


E hoje quero falar de um autor que aparece com frequência por aqui. Quer dizer, ele é já um velho amigo, desses queridos que ficam um tempo sumidos mas quando voltam, é uma alegria desmedida. É com essa alegria, pois, que espero pelos seus novos livros, com ela também que, quando a saudade aperta, parafraseando a canção, não me acanho com ele e volto a lhe procurar: Silviano Santiago. Seu romance novo, "Mil rosas roubadas", é a alegria da vez (que estou dividindo com a descoberta de Mia Couto - mas isso é prosa pra outro post, esperem). Romance talvez não dê conta, penso agora. O livro do Silviano é uma pretensa biografia de um ser de carne e osso e que aparece disfarçado de seu próprio nome do livro, no mais à clef roman à clef que já li em tempos. Explico-me: escondido sobre a máscara do nome Zeca, o livro retrata a amizade de Silviano com o letrista e produtor cultural Ezequiel Neves. Aliás, quem assistiu ao filme da Sandra Werneck sobre o Cazuza viu um Zeca porra-louca e, de algum modo, bastante caricaturado. Não é esse, no entanto, que resvala do romance de Silviano. É, por outro lado, um Zeca íntimo, de algum modo difuso, o amigo que fez com que Silviano, ao perdê-lo para o câncer em 2010, se sentisse uma espécie de viúvo. Daí a necessidade imperiosa de revivê-lo por outra luz, que não aquela que a mídia consagrou. Um Zeca profundo e, sobretudo, admirável. Aliás, a epígrafe do livro, retirada da obra do húngaro Sándor Márai, é bastante reveladora. Diz que sobreviver àquele que se ama é um crime não qualificado no código penal. Pode ser. O certo é que, fica patente por todo o romance, permanecer para além do ser querido é tão doloroso a ponto de fazer-nos querer também morrer. Ou por outro lado, como fez Silviano, escrever para fazer o outro vivo mais uma vez.


Quem busca um romance de referências à vida e seus fatos cotidianos, gostos e situações reais (aliás, como a sobeja maioria dos romances à clef) pode tirar seu burrico da sombra. O livro é, talvez, o menos referente do Silviano. Mas é, paradoxalmente, o mais confessional livro do autor mineiro. Ouso dizer que é seu coming out, mas não sentido tão incensado quanto desnecessário que se vê por aí. O que quero dizer (o que Silviano quer dizer, na verdade), é que amizade apaixonada entre o narrador (ele) e Zeca (o outro) que durou mais de cinquenta anos e que o livro dá conta, mesmo que difusamente, de percorrer é entendida, desde a primeira linha, como fundamental para a vida e a experiência de estar vivo do narrador. Daí, senhoras e senhores, a potência do livro. Entre idas e vindas dessa amizade (desse amor, sem que nunca, nunquinha os dois personagens tenham consumado qualquer via de fato), Zeca e o narrador se moldam e se enquadram na vida. Melhor, fazem com que a vida se enquadre a eles. Zeca mais, aí sim o seu lado iconoclasta aparece. O narrador menos, torna-se professor universitário e acomoda-se na vida acadêmica. Mas sua vida do espírito, essa sim nunca mais é a mesma desde os idos de 1952, numa praça belo-horizontina, quando os dois se conhecem e se tornam amigos, até 2010, quando a chama da vida de Zeca se apaga. E que Silviano, por obrigação e necessidade, reacende e faz questão de carregar e nos entregar.


Como texto do dia, claro, deixo um trecho do romance, pequena picada desta maravilha que é "Mil rosas roubadas" (e que, salvo engano, cita Cazuza uma única vez):



"Talvez tenha sido na esperança de um dia assumir a condição de cúmplice que tenha me exposto à sua visitação durante todas as vinte e quatro horas do dia do restante de minha vida. Que ele me visse e me analisasse dia e noite, dos pés à cabeça, e me julgasse com outros olhos - os de espectador que assiste ao filme da vida com a imaginação do corpo em estado de transe - nas sucessivas e atrevidas mudanças por que fui passando. Conhecendo como me conheceria em todos os minutos e horas da vida, poderia escrever minha biografia e dar a conhecer ao mundo que fôramos inicialmente apaixonados, depois amigos e, finalmente, cúmplices."

(Silviano Santiago, "Mil rosas roubadas", p. 224).



Do Jorge.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Um reencontro





Olá!



Sempre fui rato de biblioteca, ça va sans dire. Hoje menos, claro. Consigo comprar os livros que quero pela internet ou visitando livrarias, que se tornaram mais acessíveis do que quando eu era adolescente e passava as tardes na Biblioteca Pública Municipal Dr. Eduardo Durão Cunha, em Nova Venécia (onde estudei na adolescência), enquanto esperava a hora da minha aula de piano ou o ônibus de volta para casa, em Boa Esperança. Posso dizer que essa biblioteca, mais do que qualquer outra, é mítica para mim. Foi lá que, por exemplo, me deparei numa tarde com um livro que sequestrou imediatamente o meu olhar, mais pela capa do que pelo título: duas mãos estendidas com um ovo sobre elas. Tratava-se de Bagagem, de Adélia Prado, em sua primeira edição, da Imago, de 1976 - que consegui num sebo anos depois. Começou aí um caso de amor que dura quase duas décadas,  Adelita e eu... Também li desbragadamente a Coleção Prêmios Nobel, através da qual conheci autores como T. S. Eliot, John Galsworth, Ivan Bunin, Salvatore Quasimodo, Saint-John Perse, Gabriela Mistral, Selma Largelöff... Sem contar que a minha paixão por romances policiais também teve início naquela biblioteca: Agatha Christie, Ngaio Marsh, P. D. James, Conan Doyle e tantos outros, que freneticamente devorava. De fato, tive encontros memoráveis naquelas tardes passadas entre as estantes daquela biblioteca, meio mágica, meio mítica. Mas totalmente essencial.


E houve Drummond. Minha história com ele começou lá, quando li As impurezas do branco, talvez em 1995 ou 96, não sei bem. Esse não é o melhor livro para se começar com o a poesia do Carlos, hoje penso. Escrito em 1973, o livro foi considerado por muitos na contramão da realidade brasileira (que vivia o auge do governo Médici e seus arroubos autoritários), ao falar de temas mais globais, como a questão atômica (presente em muitos poemas do livro) ou de temas mais universais e etéreos, como D. Quixote, o suicídio, a amizade, a própria poesia... É um livro difícil para um adolescente de quatorze, quinze anos. Mas eu o enfrentei. Foi a minha porta de entrada na obra drummondiana, como disse. E não é que nunca mais saí de lá? Drummond, de quem me orgulho ter lido tudo, de fio a pavio, é um companheiro constante - meu exemplar de "Antologia poética" está totalmente ensebado, tanto que o consulto, tal um oráculo, para as horas de aflição ou de gozo, tanto faz -, um autor com o qual atravessarei a vida, que lerei daqui a anos. Que lerei sempre, enquanto puder ler. Daí o meu apreço por esse livro, As impurezas do branco. 


Um livro que não constava na minha biblioteca, preciso dizer. E não sei dizer por que. Tenho muitos "drummonds", mas esse. Esse não havia. E, sendo a memória seletiva (às vezes, invertidamente, como nesse caso), o livro foi ficando oculto em mim, nunca me ocorreu comprá-lo. Até mesmo porque a edição anterior, da Record, esgotara-se, penso, ficou difícil de encontrar em sebos. O certo é que o livro ficou mais meta do que físico, entendem? Até o domingo passado quando, numa visita (obrigatória) a uma livraria da capital, me deparei com a nova edição do livro, da Companhia das Letras. Não sou místico, mas preciso confessar que, naquele momento, senti que o livro estava ali me esperando. Foi uma sensação como a de encontrar um antigo amigo, de anos. Porque toda uma sorte de lembranças me vieram, de mistura com a saudade, ao vislumbrar a capa branca com círculos, um vermelho, um preto e outro branco sobre cinza (me remeti, na hora, à capa antiga, laranja com um quadrado branco). E o título, mágico, As impurezas do branco, de Carlos Drummond de Andrade. Fui ao caixa sem consultar o preço e sem escolher mais nada: aquele livro precisava ser meu  - e não podia ser outro exemplar, encomendado ou de sebo, mas aquele!


Tal a menina do conto "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector, namorei o livro até ontem. O tive em minhas mãos, o pus na cabeceira da cama, procrastinei até pôr meu ex-libris na contracapa, como é o meu costume... só ontem à noite o reli. De uma sentada. Não contei o tempo, mas era noite  alta quando terminei os últimos verso de "O quarto de banho", o último poema do livro:" A pomba pousa no basculante / assiste ao esguicho da água / à canção das torneiras / ao glissiglissar dos sabonetes / à purificação dos corpos / e voa". Tudo em Drummond é belo, já é mais que clichê dizer, mas este livro tem belezas mais raras. À impressão equivocada de alienação apontada pela crítica nos anos 70, o poeta responde com textos potentes e politizados que, sem falar diretamente do Brasil da ditadura, referem-se cifradamente a ele. É o caso de "Diamundo" ("Dê uma colher de chá aos ricos / Vá morar com eles / no Jardim Sul-América) e "Ao deus Kom Unik Assão" ("Compro. / Sou / geral / É pouco? / Multi / versal. / É nada? / Sou / al"). Por outro lado, as facetas mais significativas da poesia drummondiana estão também presentes: temas como o amor ("Quero que todos os dias do ano / todos os dia dia via / de meia em meia hora / de 5 em 5 minutos / meu digas: Eu te amo", In: "Quero), os amigos que se foram ("Onde está, onde estará Mestre Rodrigo / o dos entalhadores pintores pedreiros", In: "Ausência de Rodrigo") e a morte ("Os mortos / conquistam a vida, não / a lendária, / mas a propriamente dita, / a que perdemos / ao nascer", In: "Vida depois da vida"). É um Drummond dos bons!, me permito dizer com certa liberdade. Porque é um grande livro e, também, porque tenho com ele a maior "intimidade", agora reconquistada. 


Claro que o texto do dia teria que ser dele, certo? De todos os poemas do livro, escolho um dos mais conhecidos da lavra de Drummond. É um texto muitas, muitas vezes repetido. Mas que conserva, talvez por isso mesmo, uma potência e uma atualidade espantosas. Sobretudo nesses nossos pós-modernos tempos. Que Drummond não viveu. Mas que, em muitos textos, pareceu prever:

O HOMEM; AS VIAGENS



O homem, bicho da terra tão pequeno
Chateia-se na terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a lua
Desce cauteloso na lua
Pisa na lua
Planta bandeirola na lua
Experimenta a lua
Coloniza a lua
Civiliza a lua
Humaniza a lua.


O homem chateia-se na lua.
Vamos para marte - ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em marte
Pisa em marte
Experimenta
Coloniza
Civiliza
Humaniza marte com engenho e arte.


Vamos a outra parte?
Claro - diz o engenho
Sofisticado e dócil.
Vamos a vênus.
O homem põe o pé em vênus,
Vê o visto - é isto?
Idem
Idem
Idem.


Proclamar justiça junto com injustiça
Repetir a fossa
Repetir o inquieto
Repetitório.


O espaço todo vira terra-a-terra.
O homem chega ao sol ou dá uma volta
Só para tever?
Não-vê que ele inventa
Roupa insiderável de viver no sol.
Põe o pé e:
Mas que chato é o sol, falso touro
Espanhol domado.


Restam outros sistemas fora 

Do solar a col-
Onizar.
Ao acabarem todos
Só resta ao homem
(estará equipado?)
A dificílima dangerosíssima viagem
De si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar
Colonizar
Civilizar
Humanizar
O homem
Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
A perene, insuspeitada alegria
De con-viver.


(Carlos Drummond de Andrade, p. 27-29)

Do Jorge.