domingo, 19 de setembro de 2010

Pelo vídeo, "Os sentidos sentidos"


Olá!



Tenho aqui em casa uma quantidade enorme de fitas de vídeo. Como sabem, sou dos anos 90, fui educado pelo vhs. Os filmes clássicos, eu os vi através dele. E quando descobri que se podia gravar as coisas da tv por ele, foi a glória. Não passava um dia sem gravar um programa de tv, de coisas raras e hoje cults (como a série Concertos Internacionais, da Globo) à coisas fúteis, como as vídeo-cassetadas do Faustão. E fui reunindo coisas, acumulando, como gosto de fazer, ao longo do tempo. E reuni essa pilha de fitas, além daquelas que fui comprando (filmes, em sua maioria) ou ganhando dos amigos que iam trocando o vídeo pelo dvd e não as queriam mais. Até que um dia, meu próprio vídeo estragou. Fui à cata de conserto, mas não havia mais peças disponíveis para ele. Encaixotei o bicho e as fitas ficaram esquecidas na estante. Também, veio o dvd, que abarcou tudo: os filmes que tinha, podiam ser encontrados agora nesse formato que, segundo dizem, nunca se estraga. O que por um lado é excelente, já que me diziam que as fitas tinham uma vida útil de 20 ou 25 anos, no máximo, enquanto um dvd, se bem conservado, dura ad infinitum. Acabei me consolando com o dvd - e fui acumulando dvds, hoje os tenho em maior quantidade que as fitas. Mas elas persistiram, é claro.

E eis que esse fim de semana, um milagre - só posso chamá-lo assim. Um amigo veio aqui e viu as fitas, um dia desses. Ele nada disse. Voltou ontem e me trouxe de presente, advinhem, um vídeo-cassete. Fiquei extático! Ele disse, "Funciona direitinho, o cabeçote está novo em folha". Juro, nunca pensei que uma palavra obsoleta, do passado tecnológico, fosse me trazer tanta alegria como esta, "cabeçote". Nem preciso dizer que passei a tarde e a noite revendo fitas, catalogando, fazendo marcas nelas para poder me lembrar das coisas que gravei e que nem sabia mais que tinha, raridades que agora posso rever: o show "Marítimo", da Adriana Calconhoto, que gravei em 1997, no Multishow, num domingo chuvoso e repleto de beleza; a bela entrevista que Jorge Amado e Zélia Gattai deram a Pedro Bial, quando ele apresentava o Espaço Aberto, da Globo News, em fins dos 90; o Concerto para Harpa de Gabriel Pierné, com Marielle Nordmann, gravado em 1998, na Tv Cultura (e que eu vivia procurando no Youtube); a escolha do papa Bento XVI, em 2004, que matei aula no mestrado para assistir e gravar, só para ter a emoção de ver, mesmo que pela tv, a fumaça branca subindo pelos céus do Vaticano (e como chorei, emocionado, por participar, como espectador, daquele momento histórico); o último concerto do Karajan, em Berlim, gravado por mim em 1993, uma das primeiras coisas que gravei quando ganhei um vídeo. E zil outras coisas retornaram pela tela da tv, reproduzidas por esse aparelho que para mim agora adquiriu o status de mágico, o vídeo-cassete.

Mas uma das coisas que voltaram e que me fizeram sair de mim, por instantes, foi uma fita velhíssima (1992) que ganhei de um colega do mestrado. Um dia, veio ele com uma fita e disse, "Já que vais escrever tua tese sobre o Caetano, isso vai servir". Era o especial da Manchete (vocês lembram da TV Manchete???), em comemoração aos 50 anos do Caê. Vi com entusiasmo a longa entrevista do baiano e os números musicais do show "Circuladô", que também tenho na íntegra, num outro cassete. E ontem, foi uma das coisas que logo fui rever. E relembrar. Nossa, tem coisas geniais ali, como d. Canô conhecendo o neto Zeca, então recém-nascido, e o Caetano explicando que "Debaixo dos caracóis dos seus cabelos", do Roberto Carlos, foi feita para ele enquanto estava no exílio londrino nos anos 70. E há a mágica leitura do poema "Os sentidos sentidos", do Augusto de Campos. Caetano, com um fundo de flores, lê, com os óculos minúsculos, essa pérola de "Viva vaia", com dignidade e beleza. É estonteante, de tão mágico.

E encerro esse post com ele, o poema. Ponho também o link do vídeo no Youtube, que depois descobri disponível:http://www.youtube.com/watch?v=SDAve2_1lM0 Claro, na minha velha fita é melhor. Aqueles chiados e riscos na tela me remetem ao passado, à memória. Que o youtube recuperou. Mas que vídeo fez em mim imortal.



OS SENTIDOS SENTIDOS


o amor que a mim comove
e a qualquer homem
o baixo ventre
o baixo ventre
e também os seios às mulheres
o amor que enverniza a flor
o mal
a fúria de dois leões
que ferem a pele do amor
e não o cerne do amor
que a mim comove
o alto coração
como alto ar que aura
a fronte da acrobata
é lenda?


podes ser falsa
e oscilas como o riso
da fímbria do rictus
de um olho de vidro
do prateado poeta
para a vida
ou como a serpente estendida
sob a escama sibilina
come a flauta
o poeta
alisa tua seda
é lenda?


o nome quer brilhar a língua
língua é lenda
a própria lenda é lenda
além da.
(Augsto de Campos, IN: "Viva vaia")



Do Jorge

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Um poema


Olá!





Vida corrida, meus amigos. Tem uma cara que não posto nada - e hoje só apareci mesmo porque sobrou uma fresta no meu dia (e hoje é 7 de setembro, dia da tal independência). Apareci também porque precisava compartilhar o poema "James Joyce", de Jorge Luis Borges (na foto acima), que li hoje de manhã, quando pesquei meu já surrado exemplar de "Elogio da sombra", do autor argentino. Os dois dispensam apresentações, o poetizadp e o poeta: Joyce é, certamente, o mais inventivo de todos os autores do século XX, com seu livro-monumento que é "Ulisses" e com seu livro-labiririnto, que é "Finnegan's wake"; e Borges vem na sua esteira, o autor cego entre os que enxergavam, mas que foi luz entre nós, os cegos.

Pois bem, li e compartilho a dádiva aqui, com vocês:



JAMES JOYCE





Num dia do homem estão os dias
do tempo, desde aquele inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias,
até aquele outro em que o ubíquo rio
do tempo terrenal torne à sua fonte
que é o Eterno, e se apague no presente
o futuro, o ontem, o que agora é meu.
Entre a alva e a noite está a história
universal. Do fundo da noite vejo
a meus pés os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me, Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia.

Cambridge, 1968.

(Jorge Luis Borges, "Elegio da sombra", p. 12)





Poderia tecer comentários mil sobre este poema, mas seriam inúteis: ele se diz sozinho. É só pensar no verso "Entre a alva e a noite está a história / universal". E não é isso que é a vida? Não é essa a única verdade?





Do Jorge.