Olá!
Tenho aqui em casa uma quantidade enorme de fitas de vídeo. Como sabem, sou dos anos 90, fui educado pelo vhs. Os filmes clássicos, eu os vi através dele. E quando descobri que se podia gravar as coisas da tv por ele, foi a glória. Não passava um dia sem gravar um programa de tv, de coisas raras e hoje cults (como a série Concertos Internacionais, da Globo) à coisas fúteis, como as vídeo-cassetadas do Faustão. E fui reunindo coisas, acumulando, como gosto de fazer, ao longo do tempo. E reuni essa pilha de fitas, além daquelas que fui comprando (filmes, em sua maioria) ou ganhando dos amigos que iam trocando o vídeo pelo dvd e não as queriam mais. Até que um dia, meu próprio vídeo estragou. Fui à cata de conserto, mas não havia mais peças disponíveis para ele. Encaixotei o bicho e as fitas ficaram esquecidas na estante. Também, veio o dvd, que abarcou tudo: os filmes que tinha, podiam ser encontrados agora nesse formato que, segundo dizem, nunca se estraga. O que por um lado é excelente, já que me diziam que as fitas tinham uma vida útil de 20 ou 25 anos, no máximo, enquanto um dvd, se bem conservado, dura ad infinitum. Acabei me consolando com o dvd - e fui acumulando dvds, hoje os tenho em maior quantidade que as fitas. Mas elas persistiram, é claro.
E eis que esse fim de semana, um milagre - só posso chamá-lo assim. Um amigo veio aqui e viu as fitas, um dia desses. Ele nada disse. Voltou ontem e me trouxe de presente, advinhem, um vídeo-cassete. Fiquei extático! Ele disse, "Funciona direitinho, o cabeçote está novo em folha". Juro, nunca pensei que uma palavra obsoleta, do passado tecnológico, fosse me trazer tanta alegria como esta, "cabeçote". Nem preciso dizer que passei a tarde e a noite revendo fitas, catalogando, fazendo marcas nelas para poder me lembrar das coisas que gravei e que nem sabia mais que tinha, raridades que agora posso rever: o show "Marítimo", da Adriana Calconhoto, que gravei em 1997, no Multishow, num domingo chuvoso e repleto de beleza; a bela entrevista que Jorge Amado e Zélia Gattai deram a Pedro Bial, quando ele apresentava o Espaço Aberto, da Globo News, em fins dos 90; o Concerto para Harpa de Gabriel Pierné, com Marielle Nordmann, gravado em 1998, na Tv Cultura (e que eu vivia procurando no Youtube); a escolha do papa Bento XVI, em 2004, que matei aula no mestrado para assistir e gravar, só para ter a emoção de ver, mesmo que pela tv, a fumaça branca subindo pelos céus do Vaticano (e como chorei, emocionado, por participar, como espectador, daquele momento histórico); o último concerto do Karajan, em Berlim, gravado por mim em 1993, uma das primeiras coisas que gravei quando ganhei um vídeo. E zil outras coisas retornaram pela tela da tv, reproduzidas por esse aparelho que para mim agora adquiriu o status de mágico, o vídeo-cassete.
Mas uma das coisas que voltaram e que me fizeram sair de mim, por instantes, foi uma fita velhíssima (1992) que ganhei de um colega do mestrado. Um dia, veio ele com uma fita e disse, "Já que vais escrever tua tese sobre o Caetano, isso vai servir". Era o especial da Manchete (vocês lembram da TV Manchete???), em comemoração aos 50 anos do Caê. Vi com entusiasmo a longa entrevista do baiano e os números musicais do show "Circuladô", que também tenho na íntegra, num outro cassete. E ontem, foi uma das coisas que logo fui rever. E relembrar. Nossa, tem coisas geniais ali, como d. Canô conhecendo o neto Zeca, então recém-nascido, e o Caetano explicando que "Debaixo dos caracóis dos seus cabelos", do Roberto Carlos, foi feita para ele enquanto estava no exílio londrino nos anos 70. E há a mágica leitura do poema "Os sentidos sentidos", do Augusto de Campos. Caetano, com um fundo de flores, lê, com os óculos minúsculos, essa pérola de "Viva vaia", com dignidade e beleza. É estonteante, de tão mágico.
E encerro esse post com ele, o poema. Ponho também o link do vídeo no Youtube, que depois descobri disponível:http://www.youtube.com/watch?v=SDAve2_1lM0 Claro, na minha velha fita é melhor. Aqueles chiados e riscos na tela me remetem ao passado, à memória. Que o youtube recuperou. Mas que vídeo fez em mim imortal.
OS SENTIDOS SENTIDOS
o amor que a mim comove
e a qualquer homem
o baixo ventre
o baixo ventre
e também os seios às mulheres
o amor que enverniza a flor
o mal
a fúria de dois leões
que ferem a pele do amor
e não o cerne do amor
que a mim comove
o alto coração
como alto ar que aura
a fronte da acrobata
é lenda?
podes ser falsa
e oscilas como o riso
da fímbria do rictus
de um olho de vidro
do prateado poeta
para a vida
ou como a serpente estendida
sob a escama sibilina
come a flauta
o poeta
alisa tua seda
é lenda?
o nome quer brilhar a língua
língua é lenda
a própria lenda é lenda
além da.
(Augsto de Campos, IN: "Viva vaia")
Do Jorge