Olá!
Há algum tempo, tive um sonho que, penso, me acompanhará para sempre. Até escrevi um post sobre ele aqui no blog. O sonho foi muito simples: uma ilha no meio do mar, no que pareciam os confins da Terra. O que me impactou, como conto no outro texto, foi a própria visão da ilha, um pequeno halo de terra no meio de um mar indecentemente azul, azulíssimo. Como disse, é um sonho que me persegue, por sua beleza. Beleza que, de certo modo, sempre busquei, em livros, discos, filmes, na minha vida, enfim, e que naquele sonho se materializou naquela minúscula e fascinante ilha no meio de um mítico oceano.
E, como a moira grega, o destino nos reserva suas pecinhas, as referências. Eis que hoje, lendo o livro "Todos os fogos o fogo", de Julio Cortázar, deparo-me com um conto chamado "A ilha ao meio-dia", que não conhecia. O enredo (desculpe, leitor, mas terei que contá-lo inteiro) é bastante simples, como meu sonho: um comissário de bordo, de nome Marini, que faz sempre a rota Roma-Teerã, vê, num dia normal de voo, uma ilha exatamente ao meio-dia. Trata-se de Xiros, uma ilhota encravada em meio a tantas outras no azul Egeu grego. Inevitavelmente, diante daquela visão da beleza, apaixona-se pela ilha e passa a acalentar o sonho de visitá-la. Após arranjos na companhia aérea, consegue, pegando um navio pesqueiro, enfim, chegar a Xiros. Marini hospeda-se em casa da única família que habita o lugar e pensa tornar-se pescador como eles - porque, sem poder fugir à moira (aqui apropriada, já que estamos em terreno grego), sabe que vai permanecer em Xiros para sempre. Uma felicidade inaudita o invade. O jovem Marini põe um calção e vai nadar no Egeu. E então, algo insólito (aqui apropriado, já que estamos em terreno cortazariano) ocorre: Marini vê, ao meio-dia, o avião em que trabalha atravessar o céu da ilha e, de repente, cair, do outro lado dela. Em desespero, atravessa o rochedo e chega à enseada, onde vê a cauda do avião mergulhar silenciosamente no mar. Nada até lá e consegue resgatar um único passageiro, um jovem comissário de bordo, garganta cortada, já morto... nesse instante, chegam os habitantes da ilha e descobrem o corpo, na areia. É o primeiro estranho que veem em muitos anos, na ilha. Ou seja, Marini não esteve antes em Xiros, de fato, e tudo não passou de uma visão, um sonho, o sonho que antecedeu à queda do avião, fazendo seu corpo morto, ironicamente, ir ter na ilha que tanto sonhou visitar.
Nem preciso dizer que o conto me reconectou com meu sonho. Aqui, claro, a imagem da ilha tem um viés trágico, mas não deixa de ser uma metáfora da busca pela beleza, que todos nós perseguimos. Que o personagem Marini, do conto de Cortázar, perseguiu e encontrou, numa ilha ao meio-dia. Que também eu persigo, desde que vi aquela ilha, num sonho à meia-noite.
Deixo, como texto do post, o trecho final do conto, pleno de beleza:
(...) Incapaz de lutar contra tanto
passado abriu os olhos e se levantou, e no mesmo momento viu a asa direita do
avião, quase sobre sua cabeça, inclinando-se inexplicavelmente, ouviu a mudança
do som das turbinas, a queda quase vertical em direção ao mar. Desceu correndo
pela colina, batendo contra as pedras e rasgando o braço nos espinhos. A ilha
lhe escondia o lugar da queda, mas virou antes de chegar à praia e por um
atalho previsível ultrapassou a primeira platibanda da colina e saiu na praia
menor. A cauda do avião afundava a uns cem metros, em silêncio total. Marini
tomou impulso e mergulhou, ainda esperando que o avião tornasse a flutuar; mas
só via a suave linha das ondas, uma caixa de papelão oscilando absurdamente
perto do lugar da queda, e, quase no fim, quando já não fazia sentido continuar
nadando, uma mão fora da água, apenas um instante, o tempo para que Marini
mudasse de rumo e mergulhasse para apanhar pelos cabelos o homem que lutou para
agarrar-se a ele e engoliu arquejando o ar que Marini sem se aproximar demais
lhe deixava respirar. Arrastando-o pouco a pouco, trouxe-o até a praia, tomou
nos braços o corpo vestido de branco e, estendendo-o na areia, olhou o rosto
cheio de espuma onde a morte já estava instalada, sangrando por uma enorme
ferida na garganta. De que adiantaria a respiração artificial se a cada
convulsão a ferida parecia abrir-se um pouco mais e era como uma boca
repugnante que chamava por Marini, arrancava-o à sua pequena felicidade de tão
poucas horas na ilha, gritava-lhe entre borbotões alguma coisa que ele não era
capaz de ouvir. Os filhos de Klaios vinham a toda carreira e mais atrás, as
mulheres. Quando Klaios chegou, os rapazes cercavam o corpo estendido na areia,
sem compreender como tivera forças para nadar até a praia e se arrastar,
esvaindo-se em sangue, até ali. "Fecha os olhos dele", suplicou
chorando uma das mulheres. Klaios olhou em direção ao mar, procurando algum
outro sobrevivente. Mas, como sempre, estavam sozinhos na ilha e o cadáver de
olhos abertos era a única coisa nova entre eles e o mar.
(Julio Cortázar, "A ilha ao meio dia", p. 132-133)
Do Jorge.
(P.S.: Na foto, a Ilha de Zakynthos. Grega, evidentemente.)
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