segunda-feira, 20 de junho de 2011

Bach e Muitas vozes



Olá!



Tarde azul, o campo da epifania. É um oásis no meio do frio mês de junho, até o sol, ainda que timidamente, reverbera entre as dracenas no quintal. Decido que não posso perdê-los, a tarde e o sol. Vou até a estante escolho, disco e livro, decidido: A Suíte Inglesa nº 2, de Bach, e "Muitas vozes", de Ferreira Gullar. Ponho o disco, devagar, como devem ser os prazeres, lentamente mergulhando neles, escolho a "Sarabanda". No piano, Martha Argerich pressiona cada nota com a precisão de uma artesã, sois, dós e mis enchem a casa, como numa benção. Sento no sofá e abro o livro, com cuidado procuro o poema e, ao encontrá-lo, recito-o alto, minha voz de mistura com o som cristalino do piano, Bach e Gullar irmanando-se. Sinto que o momento é solene. Por isso falo como se fosse um sacerdote a emitir uma sentença da qual depende a felicidade do planeta, da tarde, a minha própria, que seja. E não sou, aqui, ao menos nesse momento?




MUITAS VOZES




Meu poema
é um tumulto:
a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido.



(estamos todos nós
cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz:




se dizes pêra
acende-se um clarão
um rastilho
de tardes e açúcares
ou
se azul disseres
pode ser que se agite
o Egeu
em tuas glândulas)



A água que ouviste
num soneto de Rilke
os ínfimos
rumores de capim
o sabor
do hortelã
(essa alegria)




a boca fria
da moça
o maruim
na poça
a hemorragia
da manhã




tudo isso em ti
se deposita
e cala.
Até que de repente
um susto
ou uma ventania
(que o poema dispara)
chama
esse fósseis à fala




Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.


(1999)






Do Jorge.

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