domingo, 29 de agosto de 2010

Um filme profundamente humano


Olá!



Toda lista contendo os maiores autores do século XX certamente contará com o nome do italiano Primo Levi. Sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, Levi fez dessa condição o pilar central para a construção de uma obra que se debruça sobre a banalidade do mal e sobre a condição do homem diante dele. De certo modo, ele foi a negação da assertiva de Adorno, o filósofo alemão, quando este, ao final da Segunda Guerra e a revelação do horror que foi o Holocausto, disse: "A poesia é impossível depois de Auschwitz". Pois Primo Levi representa extamente o contrário. Porque seus livros refletem justamente a possibilidade transformar aquela experiência em beleza. Ainda que sombria, em alguns momentos. Mas sobretudo humana. Como se lê em "Os afogados e os sobreviventes", "É isto um homem" e "A trégua".

Pois bem, na semana passada, ao terminar o estudo da Segunda Guerra com meus alunos da 8ª série, resolvi fazer uma experiência meio arriscada: exibir para eles o filme "A trégua", de Francesco Rossi", adaptação cinematográfica do livro homônimo de Primo Levi, com o excepcional ator John Turturro, no papel de Levi, e Rabe Serbedzija (que alguns conhecem de "Batman begins"), no papel do excêntrico grego Mordo Nahum, um dos companheiros de Levi na volta para casa. A história, realíssima, conta a viagem de Levi e seus companheiros de Auschwitz depois que os russos libertam o campo, em fevereiro de 1945, no finzinho da guerra. Por que arriscada? Ora, em tempos de "Avatar", da refilmagem (inútil, por sinal) de "Karatê Kid" e o besteirol de "High School Music", pensei que jamais meus meninos achariam um filme assim, sem qualquer apelo holywoodiano , interessante. Ledo engano meu. O filme tocou fundo na sensibilidade deles - e foi um tapa na cara do meu pré-conceito em relação ao que meus alunos elegiram como bom. Durante todos os 117 minutos, ouvi pouquíssimos sons (e alguns, entre eles,que bem poderiam ser de choro), pois eles estavam como hipnotizados pela história de Primo, um homem que poderia ter desistido de viver depois de passar pela pior das experiências humanas, como é estar num campo de concentração. No entanto, ao ser liberto, é a vida que ele tenta redescobrir. Por isso tudo para ele tem um sabor especial: uma refeição decente, alguém que toca violino num bar, um par de sapatos novos, o beijo de uma mulher. Coisas banais em tempos comuns, mas profundamente belas aos olhos de um homem que sobrevivei às trevas e agora redescobre a luz. Em suma, um belo filme, que meus alunos adoraram. Por que? Porque é profundamente humano. Como eles.



Do Jorge.

domingo, 22 de agosto de 2010

Domingo


Olá!



O dia está assim estranho, nem quente, nem frio. Nem sol, nem chuva. Uma manta chata de fumaça e nublado no céu lá fora. É de deixar qualquer cristão irritado. Fico pateta, andando pela casa, à procura - do quê? Paro ante a estante, à guisa de consolo, talvez algum oráculo resolva o enigma deste dia, tal o I-Ching.

E vejam só a resposta que me vem, desta vez através da sempre iluminada lira drummondiana:



A PALAVRA MÁGICA



Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida,
a senha do mundo.

Vou procurá-la.
Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.


(Carlos Drummond de Andrade, "Discurso de primavera e algumas sombras", p. 109)



Não é de salvar o domingo de qualquer um? Milagre não sei se é, mas acabo de olhar pela janela: o sol acaba de abrir, em amarelo vivíssimo...



Do Jorge.

sábado, 21 de agosto de 2010

Heloísa Buarque de Hollanda


Olá!







Formidável a entrevista da professora Heloísa Buarque de Hollanda ao programa "Umas palavras", do Futura. Grande teórica da nossa cultura, fundadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ, Heloísa intepreta como poucos o hibridismo cultural que nos cerca, desde os anos 60, quando começou sua carreira intelectual. No mestrado, entrei em contato com sua obra, através da professora Stelamaris Coser, que me indicou o maravilhoso "Tendências e impasses", uma análise do feminismo e seus impactos na cultura brasileira. Depois, li "Impressões de viagem", fundamental leitura da década de 70, considerada a época do desbunde, que viu nascer o cinema de Sganzerla, a poesia marginal (que ela coligiu na antologia "26 poetas hoje", a música dos Dzi Croquetis, tanta coisa genial... Gerações de intectuais foram formados por essa grande professora, que é, além de brilhante, vidrada em novelas, nos netos e nos cachorros.

Por isso, reencontrá-la hoje de manhã na TV foi tão bom, ela que é a eterna musa (título que odeia) da nossa crítica. Vai aí uma dica: ela lançou recentemente "Escolhas: uma autobiografia intelectual", que pode ser baixado (não é pirataria, viu) gratuitamente. Eis o link: http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br. O livro é fundamental para quem quer compreender o percurso intelectual dessa mulher, como ela mesma diz, "meio esquisita". Mas absolutamente fantástica.





Do Jorge.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A duração do dia


Olá!



Acabo de fechar, maravilhado, as páginas do novo livro de Adélia Prado, "A duração do dia". Posso dizer que foi uma experiência poética e mística, a um só tempo - e quem é leitor da Adélia sabe bem que, na poesia dela, essas duas convivem num conluio santo e belo. Não sou um religioso praticante, mas tenho uma vivência com o sagrado. E essa vivência vem, muitas vezes, da leitura, seja de poesia, seja da própria Bíblia, também ela repleta de beleza poética - e o que é, por exemplo, o Livro de Jó, se não um extraordinário poema sobre a experiência da dor humana?

E com Adélia Prado, refaço essa ligação, me religo ao alto, ao divino. Ela, mais uma vez, me conectou com o que há de Deus em cada um de nós, me fez ver como Ele nos espreita, como ele está em cada fragmento da nossa rica vivência neste plano. Porque foi a voz Dele que escutei através dela, ela que O filtra por sua experiência de poeta e de mulher, não tendo pudores em apresentá-Lo seja pela beleza da flor, seja pelo gozo do corpo. Porque, como ela costuma dizer, vida e experiência mística são uma só coisa, animal e anïma. São indissociáveis. Se espraiam por toda a nossa vida. Estão presentes em toda a duração do dia.

Como texto do dia, posto um poema do livro, pleno de beleza:




MAIS POTENTE QUE HORMÔNIOS


Falei sem me dar conta
de que falava coisa teosófica:
Tudo o que eu peço Deus me dá.
Desde sempre vivi na eternidade.
Poeta velho é como o Rei Davi,
donzelas são escolhidas
para lhe aquecer os ossos.
Todas o querem, ainda que, incendiadas,
só lhe restem palavras.
(p. 52)




Do Jorge.

domingo, 15 de agosto de 2010

A palavra de Lygia


Olá!



Li hoje uma entrevista concedida em 1998 pela Lygia Fagundes Telles, uma das autoras das quais conheço a obra de fio a pavio. Entre reminiscências pessoais, posicionamentos políticos e reflexões sobre o papel do escritor, há uma confissão que me comoveu. Perguntada sobre seu relacionamento com a crítica e o leitor, Lygia diz: "Se escrevo, estendo para você uma ponte, seja você um crítico ou um leitor comum. Nessa hora é como se eu dissesse, Venha. A palavra é uma ponte através da qual eu tento conseguir o amor do próximo".

Poucas vezes li uma definição tão exata do que seja escrever, esse ofício misterioso. Às vezes, chego a pensar que nasci com uma espécie de defeito, que explicaria essa compulsão pela palavra. Escrever, às vezes, é uma angústia, mas hoje fiquei reconciliado com este verbo. Porque, ao escrever, chegamos ao Outro. Buscamos o amor do próximo, segundo Lygia. Não me entenda, me ame, é o que representa a escrita. E é o que diz Lygia, ao final, "Eu sempre digo que mais importante do que a compressão é o amor".



Do Jorge.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Gal, Dylan e Caetano


Olá!




Hoje pus na vitrola o disco que Gal gravou naqueles loucos idos de 1977, o último de sua fase hippie (depois, ela se transformaria na estrela do showbizz tropical, com álbuns a um só tempo tecnicamente perfeitos e altamente comerciais, como "Fantasia", "Tropical" e "Aquarela do Brasil"): "Caras e bocas". Afinada e festiva, ela começa entoando a faixa-título com o desleixo-cuidado típico dessa fase, a voz de uma cantora que, mesmo vivendo e cantando o desbunde dos 7o, sabe que é dona de uma "nota brilhante de cristal, transparente". E, dali, ela passeia por pérolas como "Tigresa" (intensa), "Solitude" (dolorosa), até "Um favor", de Lupicínio Rodrigues, indicando o caminho que, dali em diante, seguiria: a de eterna intérprete da canção e do coração do Brasil.

Mas o post de hoje não é apenas sobre a Gal. Ela é o mote. Isso porque, em meio a esse disco genial que é "Caras e bocas", há uma canção que, re-ouvida, me conectou (pela milhonésima vez) a dois gênios, que sempre reverencio: Bob Dylan e Caetano Veloso. Gal escolheu, bem no clima do disco, a canção "It's all over now, baby" e pediu uma tradução-adaptação ao seu "muso eterno", Caetano. O resultado? Uma beleza, claro. No disco, soa sublime, combinando intensidade passional, clareza e afinação vocal. Gal vai de nota em nota, lapidando as pepitas de ouro da poesia de Dylan-Caetano, transformando a dor (porque é uma canção sobre o fim do amor) em cristal. Ouvir, como digo sempre, é um prazer difícil de narrar, mas letra, poética, tanto via Dylan, como via Caetano, cabe aqui, como texto do dia, para deliciar os estômagos ávidos de poesia neste fim de dia:



NEGRO AMOR ("It's all over now, baby")


Vá, se mande, junte tudo que você puder levar
Ande tudo que parece seu é bom que agarre já
Seu filho feio e louco ficou só
Chorando feito fogo à luz do sol
Pois alquimistas já estão no corredor
E não tem mais nada, negro amor
A estrada pra você é um jogo e ainda essência
Junte tudo que você conseguiu por coincidência
E o pintor de rua que anda só
Desenha maluquice em seu lençol
Sob seus pés o céu também rachou
E não tem mais nada, negro amor
Seus marinheiros mareados abandonam o mar
Seus guerreiros desarmados não vão mais lutar
Seu namorado já vai dando o fora
Levando os cobertores, e agora?
Até o tapete sem você voou
E não tem mais nada, negro amor
As pedras do caminho, deixe para trás
Esqueça os mortos, que eles não levantam mais
O vagabundo esmola pela rua
Vestindo a mesma roupa que foi sua
Risque outro fósforo, outra vida, outra luz, outra cor
E não tem mais nada, negro amor

(Bob Dylan / Versão: Caetano Veloso)




Do Jorge.



P.S: A capa original do disco, infelizmente fora de catálogo... mas, procurando aqui e ali, aparece fácil na net...

domingo, 8 de agosto de 2010

Um consolo


Olá!



Busco agora um consolo para a alma, para aliviá-la um pouco das dores do mundo. E ele vem, sempre vem. Dessa vez, via Camões e sua maravilhosa "Lírica". Ei-lo:



"Se só de ver puramente
Me transformei no que vi,
De vista tão excelente
Mal poderei ser ausente,
Enquanto o não for de mi.
Porque a alma namorada
A traz tão bem debuxada
E a memória tanto voa,
Que, se a não vejo em pessoa,
Vejo-a na alma pintada".
(Lírica, p. 64)



Do Jorge.

sábado, 7 de agosto de 2010

A estante




Olá!






Já disse aqui que sou vidrado em estantes. Vivo fuçando fotos na internet de estantes alheias. Porque uma estante é, antes de tudo, um aglomerado de memórias. As pessoas põe ali um pouco (ou muito) de sua história pessoal. Entram livros, discos, objetos, fotografias, lembranças que se acumulam ao longo de uma vida. Por isso hoje resolvi postar uma foto da minha estante. É meu mundo. É o lugar ao qual recorro sempre que preciso de de um alento, de diversão, de socorro mesmo. Às vezes, longe daqui de casa, súbito penso nela, nos livros e discos amados, como pessoas com as quais posso contar. Uma estante é fiel. A minha é. Deixa-me voltar a ela, então.






Do Jorge.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Adélia está de volta


Olá!



Li uma notícia na internet que me deixou em alfa: a poeta Adélia Prado vai lançar um livro novo agora em agosto, pela Record (a editora, não a tv, pelo amor!). Trata-se de "Campo de névoa", o primeiro livro de inéditas da autora desde "Oráculos de Maio", lançado em 1999. Há algum tempo, escrevi um post aqui com a pergunta, "Onde onda Adélia Prado?", e agora, eis a resposta. Fiquei louco de felicidade e logo corri às estantes, buscando um texto dela para postar aqui, como poema do dia, enquanto não sai o livro novo. Abri e eis o que me disse o oráculo:



A FORMALÍSTICA



O poeta cerebral tomou seu café sem açúcar
e foi para o gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário.
Faz três horas que estuma as musas.
O dia arde. Seu prepúcio coça.
Daqui a pouco já começam a fosforecer coisas no mato.
A serva de Deus sai de sua cela à noite
e caminha na estrada,
passeia porque Deus quis passear
e ela caminha.
O jovem poeta,
fedendo a suicídio e glória,
rouba de todos nós e nem assina:
"Deus é impecável".
As rãs pulam sobressaltadas
e o pelejador não entende,
quer escrever as coisas com as palavras.

(IN: "Poesia reunida", p. 376)



Beleza, não? Acho genial essa idéia de que as coisas não são escritas com as palavras. Porque, de verdade, não são.




Do Jorge.

domingo, 1 de agosto de 2010

Boa Esperança do Espírito Santo


Olá!



Carlos Drummond de Andrade escreveu, nostálgico, naquele que é um de seus poemas mais conhecidos (e mais pungentes), "Confidência do Itabirano": "Itabira é só um retrado na parede, / mas como dói!". Esse poema sempre me comoveu, por se tratar da palavra sincera de um poeta que, a despeito de toda a fama conseguida e da certeza de construir uma obra que alçou a perfeição, volta o seu olhar para trás, para a província, o lugar de onde veio. O olhar de quem reconhece que é, "principalmente, Itabirano".

A verdade é que todos viemos de algum lugar. Mesmo que estejamos em Nova York, Roma, Paris, São Paulo ou mesmo São Mateus, trazemos conosco as raízes, como árvores deslocadas, às vezes à força, mas que carregam consigo o signo original, a raiz pregada ao tronco.

E quão maravilhoso para mim foi descobrir, esta semana, encravado no meio do livro "Transpaixão", do poeta Waldo Motta, esperancense como eu, e que faz um sucesso danado por aí, o poema "Boa Esperança do Espírito Santo". Foi como um tapa na cara, uma sacudela na espinha, um bafejo forte de ar, que me trouxesse de volta o cheiro da minha terra. Que está logo ali, a 90 km de São Mateus, mas que, pelos caminhos que nos leva a vida, vai amarelando, como um retrato velho (como aquele na parede, ô Drummond), diluído pela distância. E pela ausência. Estou sempre lá, é certo, minha família (outro elo original) está lá, mas eu não estou mais lá, cotidianamente, vivendo nela. Não respiro mais aquele ar (puro, límpido como é o ar de nossa terra) todos os dias, não piso mais aquele chão tão caro como o chão da minha própria infância. Daí a beleza daquele poema. Eu o li em voz alta, com a voz clara, para mim e Mary. Senti, ao final, o nosso suspiro, carregado de recordações, indo fundo na memória, indo parar lá naquele pedaço de terra no mundo, o nosso lar, "Boa Esperança do Espírito Santo":



Boa Esperança, dom
que me coube e partilho.
Embutido em teu nome,
descobri o meu destino:
combater a própria morte
e o seu reino de mentiras.

Norte espírito-santense,
Boa Esperança, aqui
meu segredo se desvenda:
quem eu sou e a que vim.

(Waldo Motta, "Transpaixão", p. 46)




Do Jorge.
P.S.: A foto? Pedra da Botelha, símbolo de Boa Esperança. Não é o Everest, sei. Mas tem a mesma beleza, a mesma que ele o tem para quem vive no Himalaia. A mesma que tem para mim a Botelha, signo da minha terra.