terça-feira, 3 de julho de 2012

O corpo segundo Santiago




Olá!



Amanhã começa a Flip, em Paraty, que este ano homenageia Drummond. E, grata surpresa, a conferência de abertura será feita pelo Silviano Santiago, um dos (se não o) meus autores prediletos. Já escrevi bastante sobre ele por aqui e muito escreverei ainda, sobretudo porque ando pensando em estudar sua obra poética num projeto para o doutorado. Mas isso são outros quinhentos, outros 2013's da vida...


Silviano escreveu muito sobre o o corpo. Sobre a beleza do corpo alheio. Sobre o corpo e o desejo. Sobre o envelhecimento do corpo. O corpo escrito sob diversas óticas. Mas é, sem dúvida, "Cheiro forte", livro de 1995, a mais abrangente. Nos poucos (mas intensos) poemas do livro, Silviano aborda todas essas visões sobre o corpo, filmando-o (com o olhar pós-moderno) e traduzindo-o ao leitor. 

De "Cheiro forte" é o poema de hoje, que não tem título, como todos os textos do livro. Sempre o vejo como uma receita, nos moldes de como-fazer-para-usar, para o corpo. Uma beleza de texto, numa beleza de livro. Ei-lo:



Tenho este corpo.
Adotei-o como máquina
antes.
O sei agora
de osso, vísceras, carne e pele,
estranha
             geringonça.

Reconforta o médico:
"Saiba compreendê-lo".

(Cheiro forte, p. 11)


Do Jorge.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Hoje preferia não me ter encontrado


Olá!


O título? Os puristas dirão que construí mal a frase. Explico-me, à guisa de correção: trata-se do título, em Portugal, do livro que ando lendo, "O compromisso", de Herta Müller. É que lá a tradução saiu mais ao original alemão, "Heute wär mir lieber nicht begegnet" (que seria algo próximo de "Hoje eu não seria melhor tratada"). Achei bom, portanto, titular meu texto de hoje assim. Por que? Calma, sou um sujeito prolixo, mas sempre deixo tudo explicadinho, na medida do possível. Porque o inexplicável, explicado está. 

Quando, em 2009, Herta Müller foi agraciada com o Nobel de Literatura, fiquei cético. Minto. Não gostei mesmo, até o disse aqui. Não havia lido nada dela, ou mesmo à respeito de sua obra. Na verdade, só conhecia Müller de uma edição da revista Cult com um dossiê sobre a literatura alemã contemporânea. Na verdade, sou bastante ignorante em matéria de literatura alemã. Tirando Goëthe, Rilke, Schiller, Günther Grass e Thomas Bernhard (que é austríaco, na verdade), minhas leituras são parcas. Então, quando Herta Müller foi anunciada, a notícia passou batida, nem me interessou de fato.

Ledo engano. Só depois é que descobria a joia revelada ao mundo pelo Nobel - porque, não podemos negar, uma das funções do prêmio acaba sendo mesmo esta, a de revelar ao grande público autores circunscritos ao seu idioma ou ao seu público fiel. Herta é, no mínimo, uma autora extraordinária. Lê-la, uma experiência rica. Na verdade, quando do prêmio, no Brasil havia apenas duas traduções disponíveis de seus livros: o romance "O compromisso" e o volume de contos "Depressões", ambos da Editora Globo. Foi apenas depois do Nobel que saiu "Tudo o que tenho levo comigo" pela Companhia das Letras. Foi esse o livro dela que primeiro me caiu às mãos. Confesso que foi difícil ficar inteiro enquanto o lia a história de Leo Auberg (alter ego do poeta Oskar Pastior, amigo da autora), jovem romeno que, após a guerra, acaba num campo de trabalhos forçados, por pertencer à minoria germânica. E o que me doeu não foi outra coisa senão a fome. Sim, porque a grande protagonista do romance é essa senhora insistente e dolorosa, que rói e corrói estômago e alma. Uma beleza de texto. Foi a minha porta de entrada na obra de Müller, esta mulher que escreve sobre a opressão política pelo viés mais humano possível: a dor que ela provoca em homens e mulheres comuns, não politicamente comprometidos, mas que são cruelmente atropelados por ela. 

Em "O compromisso" não é diferente. No livro temos a história de uma mulher sem nome e que conta a sua história na primeira pessoa, numa espécie de confissão feita ao leitor. Aliás, o tema da confissão é recorrente no texto. O compromisso a que se refere o título é a obrigação que ela tem, sempre que solicitada, de depor ao major Albu, pois fora acusada de ser inimiga do regime comunista do país - numa referência clara à própria autora, que acabou emigrando da Romênia em fins dos anos 70 por recusar-se a cooperar com o regime ditatorial de Ceaucescu, que a queria informante de "comportamentos dissidentes". No livro, a personagem sonha casar-se com um italiano e, ao descobrir que as roupas que a fábrica em que trabalha produz são destinadas àquele país, passa a escrever bilhetinhos amorosos e a pô-los nos bolsos das calças, na esperança de que cheguem a algum "Marcello", como ironicamente lhe diz um companheiro de fábrica. Após descobrirem, de maneira um tanto obscura, mensagens dissidentes enviadas àquele país através das roupas, a suspeita acaba recaindo sobre ela, que passa a ser periodicamente interrogada pelo major Albu, um sádico que aplica a tortura psicológica apenas pelo prazer de aplicá-la.

A vida dessa mulher anônima, que bem poderia ser a de qualquer mulher oprimida (e, aqui, penso nas muitas opressões do mundo contemporâneo) é reduzida a esperar e a temer. Esperar o momento em que o major a envie ao Tribunal e a temer o que advirá daí. Seu relacionamento com Paul, seu marido alcoólatra, as lembranças de sua amiga Lili, assassinada pelo regime enquanto tentava cruzar a fronteira, suas memórias dolorosas do pai adúltero e da mãe ausente, tudo passa a gravitar em torno do compromisso de depor ao major Albu. E esperar, pela redenção (cada vez mais longínqua) ou pelo castigo (cada vez mais próximo). É um livro assustadoramente belo, profundamento humano. O relato potente da opressão política e de seus tentáculos sobre a vida humana. Um retrato de uma mulher que, ao acordar para mais um dia, preferiria mesmo não ter-se encontrado.

Deixo, como texto do dia, um fragmento do livro. Nele, a mulher recorda a morte da amiga Lili e acaba refletindo sobre sua banalidade. Um pouco do texto de Herta Müller, essa autora compromissada com o profundamente humano:





"Todo aquele que envelhece pensa no passado. O insolente guarda de fronteira que fuzilou Lili se parecia com a lembrança que o velho tinha de sua juventude. O guarda era um jovem camponês ou operário. Um alguém que poucos meses depois entrou na universidade, e mais tarde se tornou professor, médico, padre, engenheiro. Sabe lá o que fez da vida. Quando atirou, era só uma sentinela num vasto paraíso onde o vento assobiava dia e noite a música da solidão. A carne viva de Lili lhe deu calafrios, e a morte de Lili foi um presente do céu, concedeu-lhes dez dias inesperados de folga. Talvez, como meu primeiro marido, ele escrevesse cartas infelizes. Talvez o esperasse uma mulher como eu, que não estava à altura da morta, mas no abraço do amor podia rir e acariciar seu homem, até ele se sentir um ser humano. Talvez ele tivesse atirado naquele segundo em nome da sua felicidade, e o tiro explodiu".
(p. 60)






Do Jorge.