domingo, 28 de março de 2010

Sobre historiadores, Dante e a beleza da poesia


Olá!



Ando meio sumido. Explico: estou atolado em provas e, para completar, me candidatei a um posto de professor no IFBA, em Porto Seguro. Estou estudando feito um louco, por isso o tempo anda escasso, difícil postar. Difícil ler literatura nesses dias, quando os teóricos me exigem todo o tempo. O que é também muito bom. Andei meio distante da teoria da História nesses últimos anos, envolvido com o mestrado e nas leituras obrigatórias. Ando agora às voltas, outra vez, com Jacques Le Goff, Georges Duby, Mary del Priore, Sérgio Buarque de Hollanda, José Murilo de Carvalho, Caio Prado Jr. e outros historiadores. É um saudável reencontro.

Mas o costume. Esse não me deixa, nunca. Por isso, agora, numa pausa, fui à estante e pesquei esta pérola: um poema de Dante! Há quanto tempo não lia Dante, o genial florentino, decano da poesia lírica? O texto que posto hoje está em "Vita Nuova", livro anterior à "Divina comédia". Misto de poesia e prosa, é inteiramente dedicado a decifrar (ou melhor, a cifrar de mistério ainda mais) a figura de Beatriz, a amada ideal do poeta. Senti saudades das aulas do professor Paolo Marcello Spedicatto, da Universidade de Roma, que nos ensinou Dante durante um semestre no mestrado como professor-visitante na UFES. O curso dele era, na verdade, uma introdução ao "Inferno", mas, por duas tardes, deteve-se sobre esta maravilhosa "Vita Nuova", sobre seus enigmas e sobre a beleza da poesia lírica dantesca. Escolhi uma canção, como ele mesmo chama esse texto, dizendo que, ao falar do Amor, não poderia "narrá-lo na brevidade de um soneto". É de uma beleza... não há nem o que dizer. Só resta ler:



Tão longamente me reteve Amor
E acostumou-me à sua tirania,
Que, se a princípio parecia rude,
Suave agora me habita o coração.
Assim, quando me tira tanto as forças
Que os espíritos vejo me fugirem,
Então a minha frágil alma sinto
Tão doce, que o meu rosto empalidece,
Pois o amor tem em mim tanto poder
Que faz os meus suspiros me deixarem
E saírem chamando
A minha amada, para dar-me alento.
Onde quer que eu a veja, tal sucede,
E é coisa tão humil que não se crê.



Assim, volto mais revigorado aos meus historiadores... até!



Do Jorge.

domingo, 14 de março de 2010

Risíveis amores


Olá!



Depois de "A estrada", dei um break (três dias, na verdade) nas leituras. Recomecei com o "Indigitado", do Carlos Heitor Cony, que li num tapa. Na verdade, podia passar sem ele. Achei admirável "Quase memória", quando o li (quando?) mas este, podia passar sem. É uma obra menor.


E hoje, comecei "Risíveis amores", do Milan Kundera, que tenho há algum tempo, mas nunca havia lido. São sete contos, que versam sobre o amor e suas (mútiplas) facetas. É uma temática sobejamente batida na literatura, claro, mas cada um diz do seu modo. E quem conhece o trabalho do Kundera sabe que ele é um mestre em esquedrinhar o sentimento amoroso. Que o diga o soberbo "A insustentável leveza do ser". "Risíveis amores" é ainda mais belo, penso. Ando já pela página 33 e eis que me deparo com esta maravilha de trecho:


"Atravessamos o presente de olhos vendados, mal pemos pressentir ou adivinhar aquilo que estamos vivendo. Só mais tarde, quando a venda é retirada e examinamos o passado, percebemos o que foi vivido, compreendo o sentido do que se passou".


E não é isso o amor? Tenta-se avaliar o inavaliável, quer dizer, vamos vivendo-o, passando por ele, entregues, sem sabermos o que é, de fato, amar. Só no final é que se vê alguma luz. E é sempre bela, a luz entrevista pela fresta do amor. Bravo, Kundera!



Do Jorge.


P.S.: O poema do dia? É repostagem, aviso logo (ele já apareceu em algum lugar nesse blog). Mas é que não pude evitar a memória: "Memória", do Drummond. É um texto extamente sobre o amor findo, um acerto de contas com o passado. Extamente como no trecho do Kundera. Ei-lo, Carlos Drummond de Andrade:


MEMÓRIA


Amar o perdido
deixa confundido
este coração.


Não pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do não.


As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.


Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
(C. D. de Andrade)


Do Jorge.

terça-feira, 9 de março de 2010

A estrada (II)


Olá!




Terminei o livro, terminou a saga do pai e do filho na terra desolada. Não conto o fim, claro. Só sonto o que se deu comigo, ao terminar: choro convulso, como há anos não me ocorria ao terminar de ler um texto. Foi difícil recolocá-lo na estante, pois sabia que separar-me dele seria como deixar uma pessoa querida, recém conhecida, mas cuja imagem se sabe ficará para sempre conosco. "A estrada", de Cormac McCarthy foi um achado que ficará ressoando ainda em mim, por muito tempo, por sua beleza, por sua potência e, sobretudo, pela verdade e humanidade da história contada.


Transcrevo aqui as últimas frases do livro. O que posso dizer? Mais que sublime:




"Antes havia trutas nos riachos das montanhas. Você podia vê-las paradas na correnteza cor de âmbar onde as extremidades brancas de suas barbatanas encrespavam de leve a superfície. Tinham cheiro de musgo na mão. Polidas e musculosas e se retorcendo. Em suas costas havia padrões sinuosos que eram mapas do mundo em seu princípio. De algo que não podia ser resgatado. Não podia ser endireitado. Nos vales estreitos e profundos em que eles viviam todas as coisas eram mais antigas do que o homem e num murmúrio contínuo falavam de mistério".




Do Jorge.

domingo, 7 de março de 2010

A estrada




Olá!



Alguns livros têm vida própria, creio nisso. No ano passado, em setembro, fui a Vitória para um encontro de professores e, no intervalo do almoço, em vez de comer num restaurante decente, fiz um fast food (coisas de quem mora no interior) e fui dar uma olhada nas livrarias do centro. Numa delas, encontrei alguns livros da Alfaguarra em promoção, acabei comprando três: "Travessia de verão", do Truman Capote, "As benevolentes", de Jonathan Littlel e "A estrada", de Cormac McCarthy. Guardei para o futuro, claro. Naquela época estava envolvido com outra leituras. De lá para cá, entrei em muitas outras, acabei esquecendo os livros na estante, como faço sempre. Até que na quinta-feira passada, meio insone, desci do quarto, bem devagar para não acordar a Mary, e procurei na estante um livro para começar. A lombada vermelha de "A estrada" parecia me chamar. Atendi, claro.

Hoje, estou nas páginas finais. O que posso dizer? Trata-se de um dos melhores livros que me caíram às mãos, o melhor que li em tempos. McCarthy já era meu conhecido do livro "Onde os velhos não têm vez" (que se tornou um belo filme dos irmãos Cohen, oscarizado em 2008). Mas este livro. Este livro é sobejamente melhor que tudo o que o autor americano já escreveu. Na orelha do livro, transcrita do The Times, está a frase: "McCarthy dá voz ao indizível (...), esta é uma arte que assusta e ao mesmo tempo inspira". O romance é de um preciocismo árduo, com cada frase dando a impressão de ter sido exaustivamente lapidada pelo escritor, para estar ali não como apenas uma frase, mas como um dito essencial, uma frase que ilustre o fim dos tempos. Porque este é um romance sobre o fim do mundo. A história é esta, em linhas gerais: após um evento apocalíptico, a Terra está devastada e poucas pessoas ainda restam vivas, lutando pela sobrevivência num planeta que se tornou terrivelmente hostil. Um homem e seu filho tentam a travessia dos Estados Unidos (ou do que restou do país) em direção ao sul, para o mar. Tentam escapar do frio e dos "caras do mal", milícias de homens que, entre outras coisas terríveis, capturam pessoas para devorá-las. Não há comida e o frio é cada vez mais insuportável. Nada resta a estas duas criaturas, além do forte laço que os une: a ideia de família e de amor. O pai ama o filho e o filho ama o pai. Esta constatação é que os mantêm vivos e os ajuda a cruzar mil perigos em busca de alguma espécie de redenção. Que não sabem bem qual é e se virá, enfim.
Deixo aqui um trecho:


"Ele carregara sua carteira até que ela fizesse um buraco nas calças. Então um dia se sentou à beira da estrada e a tirou e examinou seu conteúdo. Algum dinheiro, cartões de crédito. Sua carteira de motorista. Uma fotografia de sua mulher. Espalhou tudo por cima do pavimento. Como cartas de baralho. Arremessou a peça de couro. enegrecida pelo suor, dentro da floresta, e ficou sentado olhando para a fotografia. Então colocou-a sobre a estrada também e se levantou e seguiram em frente." (p. 46)



Neste fim de tarde, antes de retomar o livro, para terminá-lo, paro para agradecer a Cormac McCarthy, por me proporcionar mais esse encontro com a beleza, que só os bons livros podem intermediar. Obrigado, então.



Do Jorge.