quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Um reencontro





Olá!



Sempre fui rato de biblioteca, ça va sans dire. Hoje menos, claro. Consigo comprar os livros que quero pela internet ou visitando livrarias, que se tornaram mais acessíveis do que quando eu era adolescente e passava as tardes na Biblioteca Pública Municipal Dr. Eduardo Durão Cunha, em Nova Venécia (onde estudei na adolescência), enquanto esperava a hora da minha aula de piano ou o ônibus de volta para casa, em Boa Esperança. Posso dizer que essa biblioteca, mais do que qualquer outra, é mítica para mim. Foi lá que, por exemplo, me deparei numa tarde com um livro que sequestrou imediatamente o meu olhar, mais pela capa do que pelo título: duas mãos estendidas com um ovo sobre elas. Tratava-se de Bagagem, de Adélia Prado, em sua primeira edição, da Imago, de 1976 - que consegui num sebo anos depois. Começou aí um caso de amor que dura quase duas décadas,  Adelita e eu... Também li desbragadamente a Coleção Prêmios Nobel, através da qual conheci autores como T. S. Eliot, John Galsworth, Ivan Bunin, Salvatore Quasimodo, Saint-John Perse, Gabriela Mistral, Selma Largelöff... Sem contar que a minha paixão por romances policiais também teve início naquela biblioteca: Agatha Christie, Ngaio Marsh, P. D. James, Conan Doyle e tantos outros, que freneticamente devorava. De fato, tive encontros memoráveis naquelas tardes passadas entre as estantes daquela biblioteca, meio mágica, meio mítica. Mas totalmente essencial.


E houve Drummond. Minha história com ele começou lá, quando li As impurezas do branco, talvez em 1995 ou 96, não sei bem. Esse não é o melhor livro para se começar com o a poesia do Carlos, hoje penso. Escrito em 1973, o livro foi considerado por muitos na contramão da realidade brasileira (que vivia o auge do governo Médici e seus arroubos autoritários), ao falar de temas mais globais, como a questão atômica (presente em muitos poemas do livro) ou de temas mais universais e etéreos, como D. Quixote, o suicídio, a amizade, a própria poesia... É um livro difícil para um adolescente de quatorze, quinze anos. Mas eu o enfrentei. Foi a minha porta de entrada na obra drummondiana, como disse. E não é que nunca mais saí de lá? Drummond, de quem me orgulho ter lido tudo, de fio a pavio, é um companheiro constante - meu exemplar de "Antologia poética" está totalmente ensebado, tanto que o consulto, tal um oráculo, para as horas de aflição ou de gozo, tanto faz -, um autor com o qual atravessarei a vida, que lerei daqui a anos. Que lerei sempre, enquanto puder ler. Daí o meu apreço por esse livro, As impurezas do branco. 


Um livro que não constava na minha biblioteca, preciso dizer. E não sei dizer por que. Tenho muitos "drummonds", mas esse. Esse não havia. E, sendo a memória seletiva (às vezes, invertidamente, como nesse caso), o livro foi ficando oculto em mim, nunca me ocorreu comprá-lo. Até mesmo porque a edição anterior, da Record, esgotara-se, penso, ficou difícil de encontrar em sebos. O certo é que o livro ficou mais meta do que físico, entendem? Até o domingo passado quando, numa visita (obrigatória) a uma livraria da capital, me deparei com a nova edição do livro, da Companhia das Letras. Não sou místico, mas preciso confessar que, naquele momento, senti que o livro estava ali me esperando. Foi uma sensação como a de encontrar um antigo amigo, de anos. Porque toda uma sorte de lembranças me vieram, de mistura com a saudade, ao vislumbrar a capa branca com círculos, um vermelho, um preto e outro branco sobre cinza (me remeti, na hora, à capa antiga, laranja com um quadrado branco). E o título, mágico, As impurezas do branco, de Carlos Drummond de Andrade. Fui ao caixa sem consultar o preço e sem escolher mais nada: aquele livro precisava ser meu  - e não podia ser outro exemplar, encomendado ou de sebo, mas aquele!


Tal a menina do conto "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector, namorei o livro até ontem. O tive em minhas mãos, o pus na cabeceira da cama, procrastinei até pôr meu ex-libris na contracapa, como é o meu costume... só ontem à noite o reli. De uma sentada. Não contei o tempo, mas era noite  alta quando terminei os últimos verso de "O quarto de banho", o último poema do livro:" A pomba pousa no basculante / assiste ao esguicho da água / à canção das torneiras / ao glissiglissar dos sabonetes / à purificação dos corpos / e voa". Tudo em Drummond é belo, já é mais que clichê dizer, mas este livro tem belezas mais raras. À impressão equivocada de alienação apontada pela crítica nos anos 70, o poeta responde com textos potentes e politizados que, sem falar diretamente do Brasil da ditadura, referem-se cifradamente a ele. É o caso de "Diamundo" ("Dê uma colher de chá aos ricos / Vá morar com eles / no Jardim Sul-América) e "Ao deus Kom Unik Assão" ("Compro. / Sou / geral / É pouco? / Multi / versal. / É nada? / Sou / al"). Por outro lado, as facetas mais significativas da poesia drummondiana estão também presentes: temas como o amor ("Quero que todos os dias do ano / todos os dia dia via / de meia em meia hora / de 5 em 5 minutos / meu digas: Eu te amo", In: "Quero), os amigos que se foram ("Onde está, onde estará Mestre Rodrigo / o dos entalhadores pintores pedreiros", In: "Ausência de Rodrigo") e a morte ("Os mortos / conquistam a vida, não / a lendária, / mas a propriamente dita, / a que perdemos / ao nascer", In: "Vida depois da vida"). É um Drummond dos bons!, me permito dizer com certa liberdade. Porque é um grande livro e, também, porque tenho com ele a maior "intimidade", agora reconquistada. 


Claro que o texto do dia teria que ser dele, certo? De todos os poemas do livro, escolho um dos mais conhecidos da lavra de Drummond. É um texto muitas, muitas vezes repetido. Mas que conserva, talvez por isso mesmo, uma potência e uma atualidade espantosas. Sobretudo nesses nossos pós-modernos tempos. Que Drummond não viveu. Mas que, em muitos textos, pareceu prever:

O HOMEM; AS VIAGENS



O homem, bicho da terra tão pequeno
Chateia-se na terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a lua
Desce cauteloso na lua
Pisa na lua
Planta bandeirola na lua
Experimenta a lua
Coloniza a lua
Civiliza a lua
Humaniza a lua.


O homem chateia-se na lua.
Vamos para marte - ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em marte
Pisa em marte
Experimenta
Coloniza
Civiliza
Humaniza marte com engenho e arte.


Vamos a outra parte?
Claro - diz o engenho
Sofisticado e dócil.
Vamos a vênus.
O homem põe o pé em vênus,
Vê o visto - é isto?
Idem
Idem
Idem.


Proclamar justiça junto com injustiça
Repetir a fossa
Repetir o inquieto
Repetitório.


O espaço todo vira terra-a-terra.
O homem chega ao sol ou dá uma volta
Só para tever?
Não-vê que ele inventa
Roupa insiderável de viver no sol.
Põe o pé e:
Mas que chato é o sol, falso touro
Espanhol domado.


Restam outros sistemas fora 

Do solar a col-
Onizar.
Ao acabarem todos
Só resta ao homem
(estará equipado?)
A dificílima dangerosíssima viagem
De si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar
Colonizar
Civilizar
Humanizar
O homem
Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
A perene, insuspeitada alegria
De con-viver.


(Carlos Drummond de Andrade, p. 27-29)

Do Jorge.



terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Amor







Olá!



"Amor", de Michael Haneke, é um filme para nunca mais ser revisto, de tão impactante, tão cruel, tão duro e tão incômodo. Tudo isso colocado no bom sentido, entendam. É uma fita para se ver apenas uma vez, porque toda ela ficará na retina, cravada como uma dolorosa cicatriz na pele, que se olhará sempre e se saberá porque está ali. 
A história de "Amor" é simples: Georges e Anne (Jean-Louis Trintignant e a excelente Emmanuelle Riva), professores de música, estão na casa dos oitenta anos e vivem com conforto num amplo apartamento em Paris. Vão à concertos, leem livros, tomam café da manhã calmamente enquanto leem o jornal e comentam as notícias do dia, recebem a visita da filha (também musicista), têm, enfim, uma existência tranquila e serena, como deve ser na velhice. Até que Anne sofre, à mesa do café, um derrame que paralisa seu lado direito, impedindo-a de andar, de tocar piano, de ler... "Amor" começa, de fato, nesse ponto. Porque todo o filme será um duro close na relação entre Georges, velho mas ainda "saudável", e Anne, velha e debilitada. 

Poucas reflexões sobre a velhice e a decrepitude que ela, inevitavelmente traz, são tão poderosas como este filme de Haneke. Talvez "Morangos silvestres", de Ingmar Bergman. Ali, porém, ela é vista de uma forma idílica (claro que há seus dissabores e desilusões). Em "Amor", não. Não há qualquer leveza, qualquer ilusão em relação ao fato de que sim, ficaremos velhos e que envelhecer é uma coisa horrível. Haneke não se poupa em filmar situações cruéis, como a dificuldade de Anne em usar o banheiro, as sessões de fisioterapia (e sua perna magra e enrugada, incapaz de se mover), a enfermeira, bruta e profissional, virando-a na cama, como um fardo qualquer. Uma cena é particularmente chocante. Um dia, ao acordar, Anne descobre que perdeu totalmente controle sobre o corpo e urinou na cama. Georges, tentando tranquilizá-la, a põe na cadeira de rodas e retira os lençóis. Num choro convulso, Anne sai tonta pelo apartamento, manejando a cadeira automática, que vai batendo pelas paredes, como se ela quisesse escapar. O que é impossível, duplamente: escapar do apartamento (porque, ambos prometeram, não irão ao hospital, nunca) e do corpo que definha. Ela está presa. Também Georges está preso. Ela, à doença. Ele, a ela. 

"Amor" é um título dúbio para este filme, intencionalmente dúbio. A rudeza que é exposta, sobretudo no chocante final (que, de certo modo, se prevê durante todo o filme) não combina com o amor, esse sentimento que julgamos tão doce e tão sereno. No filme, isso passa ao largo. O que se vê, paradoxalmente, é o outro lado do amor, o seu avesso. Aquele que suporta o insuportável, que sustenta, mesmo que à duríssimas penas, uma situação como essa, insustentável. O estoicismo de Georges ao cuidar de Anne, de cantar com ela (mesmo sabendo que ela não está mais ali), de mostrar para a filha que, sim, está tudo bem é, a seu modo, uma forma de amor. Um modo de dizer que, mesmo que Anne perca qualquer noção de identidade, ele a ama. E talvez seja este o mais duro amor.




Do Jorge.

domingo, 20 de janeiro de 2013

De olhos bem abertos



Olá!


Marguerite Yourcenar, a grande autora francesa, escreveu em seus Cahiers a respeito do processo de criação do romance "Memórias de Adriano": "aqueles que teriam preferido um 'Diário de Adriano' às memórias dele esquecem que o homem de ação raramente mantém um diário. É sempre mais tarde, do fundo de um período de inatividade, que ele recorda, anota e, na maioria das vezes se surpreende". E, penso agora, não é esta a tônica também da minha vida, deste blog, que não se furta de ser uma espécie de diário pós-moderno? Nunca registrar o dia-a-dia em si, mas as reverberações do que houve, do que aconteceu. Recordar, mais que tentar reviver.

Falando ainda de Yourcenar e seu "Memórias de Adriano", nunca me esqueço das linhas finais do romance, quando o imperador Adriano, prestes a fazer a sua passagem, reflete sobre a vida, assim em seu limiar. É bem o espírito do que escrevi acima. Nunca viver nas minúcias do cotidiano, mas na plenitude dela, da vida, dos momentos em que se olha para trás e se diz, de olhos bem abertos: Vivi.


"Pequena alma, alma terna e inconstante, companheira do meu corpo, de que foste hóspede, vais descer àqueles lugares pálidos, duros e nus, onde deverás renunciar aos jogos de outrora. Por um momento ainda contemplemos juntos os lugares familiares, os objetos que nunca mais veremos... Esforcemo-nos por entrar na morte de olhos abertos..." 
(Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, p. 287)


Do Jorge.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Uma arte



Olá!

Dei-me conta de que, no post anterior não há o texto do dia. Pecado mortal, melhor confessar. Mas, como para tudo há redenção (o grande deleite de se cometer pecados é pensar nela!), vou me redimir em grande estilo: Elizabeth Bishop, essa genial poeta norte-americana que viveu no Brasil nos anos 50 e que é dona de uma obra tão original quanto potente. Dela, posto seu texto mais conhecido (e, certamente, mais belo): "Uma arte":



UMA ARTE



A arte de perder não é nenhum mistério


tantas coisas contém em si o acidente

de perdê-las, que perder não é nada sério.



Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,

a chave perdida, a hora gasta bestamente.

A arte de perder não é nenhum mistério.


Depois perca mais rápido, com mais critério:

lugares, nomes, a escala subseqüente

da viagem não feita. Nada disso é sério.


Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero

lembrar a perda de três casas excelentes.

A arte de perder não é nenhum mistério.


Perdi duas cidades lindas. Um império

que era meu, dois rios, e mais um continente.

Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.


Mesmo perder você ( a voz, o ar etéreo, que eu amo)

não muda nada. Pois é evidente

que a arte de perder não chega a ser um mistério

por muito que pareça (escreve) muito sério.

(Elizabeth Bishop. In: "Poemas escolhidos", 2012)



Do Jorge.

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Olá!


Jorge Luis Borges (sempre ele, meu homônimo) escreveu um conto chamado "As ruínas circulares", no seu talvez mais famoso livro, "Ficções". Anos 40. Precisar não sei e, confesso já, estou com muita preguiça de ir à estante consultar meu ensebado exemplar da antiga Editora Globo de Porto Alegre, que editava as obras do Borges no Brasil - hoje, o passe do argentino pertence à Companhia das Letras, que vem fazendo uma cuidadosa reedição desses textos, tão difíceis de encontrar (uma vez corri a internet atrás de um exemplar de "O Aleph", acabando por me deparar um, assim mesmo no susto, numa banca de livros em Gramado, RS, em 2001, durante um simpósio de História, ô memória). Deus, como tergiverso! Todo esse imbróglio textual (a verborragia, ô Caetano) e, já me esquecia, falava de Borges. Pois bem, Borges escreveu "As ruínas circulares", um conto absolutamente cifrado e que tem um "enredo" bastante simples: um homem, um estrangeiro, chega a um lugar distante e encontra um antigo templo em ruínas, calcinadas pelas chamas e pelo tempo. Ali se deita e ali sonha. Começa a ver, no sonho, coisas caóticas, nascimentos, órgãos, membros: descobre que está a sonhar com a criação de um homem. Excitado, sonha mais e mais, até o homem ficar pronto. Regozija-se. Sente-se um deus. E, como uma cobra que morde o próprio rabo, o homem do seu sonho, agora feito matéria, deixa as ruínas e parte para o mundo, a viajar. Até que, algum tempo depois, chega uma planície onde há um tempo em ruínas, calcinadas pelo fogo e pelo tempo, como as que seu mestre encontrou há tempos. Sentindo-se cansando, ali se deita. E sonha. Sonha com a criação. Com a criação de um novo homem.

Sempre pensei nesse conto como uma metáfora, contrária àquela máxima de Heráclito, "tudo flui", para o eterno retorno. Estamos sempre voltando. A despeito de tudo, de nossos descaminhos, de nosso desejo por liberdade, pelo novo, pelo inédito, voltamos sempre àquilo que deixamos, àquilo que primordialmente somos. Voltar, portanto, é o verbo mais humano. Voltar ao ventre. Ao útero, não à mãe (que também é uma origem, mas não a primeira), mas ao momento mesmo de surgir. De aparecer. Daí pensar na morte como um retorno. Quando não mais estivermos aqui, é porque retornarmos ao ponto de partida. Ao pó de onde, dizem, viemos. E, ao qual, inelutavelmente, voltaremos.



Desconfio que já saibam que tudo isso, esse texto tão difuso, errante mesmo, é para demarcar que, mais uma vez, voltei. A este blog, aos textos, a este repositório dos meus destroços, dos fragmentos de meus dias, de minhas leituras, daquilo que me faz humano. Porque estou sempre voltando. Porque nunca, de fato, fui.


Do Jorge.