terça-feira, 14 de dezembro de 2010

De correrias, Caetano, um trio e a inefável beleza


Olá!



Nem direi que sumi, porque já é lugar-comum em novembro-dezembro, essa época mais que atropelada para quem vive em escola e está atulhado em provas-recuperações-trabalhos-conselhos-de-classe-conversas com pais... Ainda mais para quem emendou uma viagem internacional para o início de janeiro (passaporte, malas, roupas, listas, voucher...). Corro contra o tempo, mais do que nunca.

Mas hoje acabei ficando mais zen. Fui ouvir música. Melhor, fui fuçar música na internet. Frequento um blog que disponibiliza bons discos de música brasileira, geralmente fora de catálogo ou então pouco divulgados, o umquetenha.org. Sempre tenho gratas surpresas por lá. Reencontros, descobertas, pérolas que meu ouvido abserve com avidez. E hoje. Hoje baixei um disco que me deixou pleno de beleza nesse fim de noite, quase madrugada. Nem consigo parar de ouvi-lo, tal foi a força com que ele se grudou em mim. Trata-se de "Uns Caetanos", do grupo carioca O Tao do Trio, formado pelas belas vozes de Cristina Lemos, Helena Bel e Suzie Franco. O disco, de 2001, passeia pelo cancioneiro do baiano, desfiando canções conhecidas e óbvias (como "Você é linda" e "Baby") ou não tão óbvias assim (como "Jeito de corpo" e "Genipapo absoluto"), sempre com uma delicadeza e uma musicalidade de doer de tão belas. Uma das canções do disco é "Mãe", uma das minhas preferidas (e que a Gal gravou magistralmente nos anos 70) e cuja letra rendeu um capítulo da minha tese, sobre o tema do abandono na literatura e na sempre referencial música do Caê. A letra é densa, pesada, mas na voz das três ganhou um quê de leveza e de sentimento, que nem parece sofrer o eu-lírico que diz "eu canto / grito / corro / rio / e nunca chego a ti". Repeti a música muitas vezes (a estou repetindo agora, enquanto escrevo) e fui para a janela, olhar a noite preta que cai sobre São Mateus, sobre o planeta, sobre mim. Uma pausa na correria, uma salutar pausa, para pensar que, a despeito da dor (de todos nós, por que não dizer), existe beleza. Muita beleza.



MÃE


Palavras, calas, nada fiz
Estou tão infeliz
Falasses, desses, visse não
Imensa solidão

Eu sou um
Rei que não tem fim
Que brilhas dentro aqui

Guitarras, salas, vento, chão
Que dor no coração


Cidades, mares, povo, rio
Ninguém me tens amor
Cigarra, camas, colos, ninhos
Um pouco de calor


Eu sou um homem tão sozinho
Mas brilhas no que sou
E o teu caminho e o meu caminho
É um nem vais nem vou


Meninos, ondas, becos, mãe
E só porque não estais
És para mim que nada mais
Na boca das manhãs


Sou triste, quase um bicho triste
E brilhas mesmo assim
Eu canto, grito, corro, rio
E nunca chego a ti.
(Caetano Veloso, 1977).



Do Jorge.

domingo, 7 de novembro de 2010

Glenn Gould




Olá!




O pianista canadense Glenn Gould figura facilmente em qualquer lista dos grandes músicos do século XX. Por vários motivos: seja por seu pianismo superlativo (todos sabem que as gravações de Gould da obra de Bach são definitivas), seja por suas teorias interpretativas (é genial a sua tese sobre a forma ideal de interpretar Mozart), seja pelo uso revolucionário da mídia (Gould escreveu e dirigiu programas de rádio nos anos 60 e 70 a partir de colagens e montagens musicais e que hoje qualquer jovem do planeta imita, via youtube e outras mídias de som e vídeo).


Mas a vida de Glenn foi um espetáculo à parte. Certamente, ele foi uma das pessoas mais excêntricas que já povoaram a face da Terra. Maníaco por pílulas, Gould tinha horror de ficar doente e tomava mais de 30 comprimidos por dia. Mesmo no verão, usava grossas luvas de lá, cachecol, sobretudos, casacos e chapéu. Dizia temer um resfriado ou mesmo uma pneumonia. Vê-lo tocar era um outro espetáculo. Gould usava sempre a mesma cadeira, de apenas 20cm de altura, o que o deixava bem abaixo do teclado. E, após começar a tocar, se desfazia em caras e bocas: virava os olhos, se despenteava, suava baldes, levantava os braços. Era uma coisa. E cantava! Os engenheros de som da Sony Classics (sua gravadora por toda a vida) enlouqueciam tentando (em vão) retirar do áudio das gravações aquela voz desafinada acompanhando a melodia (e que pode ser ouvida em praticamente todas as suas gravações). Gould também amava telefones. Morto em 1982, ele não pôde presenciar a popularização da internet e dos programas de trocas de mensagens instantâneas, como o msn, por exemplo. Seria um achado para ele, que, embora recluso, adorava manter longas conversas pelo telefone com os amigos, para quem ligava às vezes às 3 horas da manhã para dizer que tinha escutado uma extraordinária ária de Wagner e, pasmem, insistua em cantá-la ao interlocutor, por dez, vinte, cinquenta minutos! Outras vezes, ligava para dizer que tinha medido a pressão às 9h34 e ela estava 13/10 e que, depois, às 9h35, a mesma já media 12/11, e que, às 9h36, ela marcava 14/13. Há sujeito mais idiossincrático?


Goud, como sabem, não se apresentava em público. Ele considerava que estar no palco era a mesma coisa que estar numa arena de leões, com uma platéia ávida por morte e sangue. Seu último concerto foi em 1964, em Los Angeles. Conta-se que, antes de pisar no palco, o faxineiro do teatro o puxou pelo braço e pediu que ele autografasse um disco que trazia nas mãos e que pertencia a sua esposa, fã do pianista. Glenn pegou a caneta, rabiscou algo na capa do lp e caminhou em direção ao palco, onde tocou "A arte da fuga", de Bach. O faxineiro, maravilhado, lembrou-se de ler o texto. Dizia: "Glenn Gould, em seu último concerto, 10 de abril de 1964." Depois disso, ele nunca mais tocou para platéias, embora empresários do mundo inteiro lhe oferecessem verdadeiras fortunas para fazê-lo. No entanto, ele mergulhou nas gravações. Gravou quase duas centenas de discos, num repertório que cobriu Berg, Prokofiev, Mozart, Hindemmit, Schoenberg, Byrd, Beethoven... E principalmente Bach. Glenn foi o grande especialista no compositor alemão, de quem gravou a obra praticamente completa. Basta dizer que a primeira gravação profissional de Gould, em 1955, foi das Variações Goldberg. Os técnicos do estúdio da Sony-CBS em Nova York riram-se por dentro diante da audácia daquele jovem de 23 em interpretar aquela pedra de toque do repertório pianístico, que poucos tinham coragem de enfrentar. Mas tiveram que engolir o riso e também conter as lágrimas diante do que viram. O jovem desengonçado e performático tocou como Deus tocaria de fosse pianista. Sua gravação foi um estrondo e lançou o nome de Gould para sempre na história da música. E qual não foi a surpresa quando, em 1981, meses antes de morrer, ele resolveu gravar novamente as mesmas Variações Goldberg! Uma interpretação diferente, mais madura, tecnicamente perfeita como a primeira. Outro enorme sucesso.


Gould morreu precocente, em 1982, aos cinquenta anos. Sofreu um derrame. Seu funeral teve que ser realizado na Catedral de St. Paul, a maior de Toronto (e do Canadá), tamanha a quantidade de fãs e amigos que desejavam despedir-se do pianista. Quando o padre anglicano concluiu a missa, puseram para tocar a ária das Variações Goldberg, que todos ouviram num silêncio mortal. De repente, uma voz se elevou sobre a música e começou a cantar a ária junto ao pianista. Logo, todos perceberam que era a prória voz de Gould, acompanhando-se, como sempre fazia. A catedral veio abaixo num estrondoso aplauso.


Glenn Gould foi também considerado um exemplo da genialidade criativa humana até pelos círculos do poder. Digo isso porque, em 1977, o governo americano resolveu enviar duas sondas que deveriam viajar para além do sistema solar, levando provas a supostos seres de outros sistemas e galáxias, de que, neste planetinha chamado Terra, havia seres pensantes: as Voyagers I e II. Confeccionou-se um disco de cobre, junto a um toca-discos e desenhos instrutivos de como tocá-lo. No disco, havia, entre outros sons, uma saudação do presidente Jimmy Carter, saudações em diversas línguas, Louis Armstrong cantando "Melancoly Blues", sons de baleias, carros e cães. E havia Glenn Gould, tocando um prelúdio de "O cravo bem temperado", de Bach. Calcula-se que a sonda saiu do sistema solar em 1990. E que ainda hoje viage pelo espaço, à procura de vida inteligente fora da Terra, para mostrar a esses que em nosso planeta há também vida inteligente. Que há arte. E que, um dia, houve um gênio chamado Glenn Gould.






Do Jorge.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

No mínimo, poeta


Olá!




José Paulo Paes, falecido em 1998, foi um dos grandes poetas brasileiros. Muito mais conhecido do público leitor por suas traduções maravilhosas (lembrem-se que foi ele quem traduziu "Tristan Shandy", de Lawrence Sterne, e o magnífico "Declínio e queda do império romando", de Gibbons, além de antologias de poetas gregos e finlandeses, vertidos diretamente do original), a poética de Paes é pouco lembrada. O que é uma verdadeira pena, já que ele era um dos nomes altos da poesia brasileira contemporânea. Nele encontramos de tudo: humor, como em "Descartes ou O suicida às avessas" (Cogito / ergo / pum!"), ironia, como em "Saldo" (a torneira fechada, / mas pior: / a falta de sede), referências literárias, como em "Ítaca" (Na gaiola do amor / não cabem as asas do condor. / Penélopes? Cefaléias! / Quanta saudade, odisséias...)... na poesia de Paes tudo cabe, já que ele era um homem de vasta cultura e também que amava a vida. E não há para um poeta, sejamos sinceros, cunluio melhor do que este, a arte e a vida.

O curioso é que o próprio Paes tinha certa aversão ao título de poeta. Ao menos, não o considerava pomposo. Certa vez, disse que se Manuel Bandeira (que é para muitos o maior poeta do modernismo brasileiro) se considerava um poeta menor, o que dizer de si mesmo? Um poeta mínimo! No entanto, digo, como disse o crítico Davi Arriguci, que José Paulo Paes era, no mínimo, poeta. E um grande poeta.

Eis um exemplo, que aqui vai fechando o post, o do dia:


AOS ÓCULOS


Só fingem que põem
o mundo ao alcance
de meus olhos míopes.


Na verdade, me exilam
dele com filtrar-lhe
a menor imagem.


Já não vejo as coisas
como são: vejo-as como eles querem
que as veja.


Logo, são eles que vêem,
não eu que, mesmo cônscio
do logro, lhes sou grato


por anteciparem em mim
o Édipo curioso
de suas próprias trevas.

(In: "Prosas, seguidas de Odes mínimas", 1992).




Do Jorge.




terça-feira, 2 de novembro de 2010

Mário e Manuel






Olá!



Falando em cartas (vide post anterior), dois grandes amigos por cartas foram os poetas modernistas Mário de Andrade e Manuel Baneira. O primeiro era um carteador inveterado. O segundo não era tão afeito assim a escrevê-las. Mas os dois travaram uma correspondência que durou de 1922 até a morte de Mário, em 1945. Viram-se pouquíssimas vezes na vida, mas trocaram centenas de cartas. Ao vivo, contidos, calados e cheios de cerimônia. Nas cartas, confissões, críticas e declarações de apreço e amizade. A correspondência dos dois está publicada numa bem cuidada edição da Edusp, que saiu no início dos anos 2000. Vale muito a pena lê-la, seja como documento histórico-literário (a história do modernismo está escrita ali e por seus realizadores), seja como documento humano (a história de uma sólida amizade também está escrita ali).


Mas o objetivo desse post não é falar outra vez sobre cartas. Tampouco sobre os dois poetas. É que vi agora que no texto anterior faltou o poema do dia. Aí logo me veio, como numa revelação, o poema que Manuel Bandeira escreveu quando soube que o amigo Mário de Andrade tinha morrido. É comovente, lógico, porque tem essa coisa trágica da perda. Mas é também um exemplo da melhor poesia moderna brasileira. Cabe aqui como texto do dia:




A MÁRIO DE ANDRADE AUSENTE



Anunciaram que você morreu.
Meus olhos, meus ouvidos testemunharam:
A alma profunda, não.
Por isso não sinto agora a sua falta.
Sei bem que ela virá
(Pela força persuasiva do tempo).
Virá súbito um dia,
Inadvertida para os demais.
Por exemplo assim:
À mesa conversarão de uma coisa e outra.
Uma palavra lançada à toa
Baterá na franja dos lutos de sangue.
Alguém perguntará em que estou pensando,
Sorrirei sem dizer que em você
Profundamente.

Mas agora não sinto a sua falta.
(É semrpe assim quando o ausente
Partiu sem se despedir:
Você não se despediu.)

Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz tempo que ele não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.
Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.
Saberei que não, você ausentou-se.
Para outra vida?
A vida é uma só. A sua continua
Na vida que você viveu.
Por isso não sinto agora a sua falta.

(Manuel Bandeira, 1945)



Lindo, não?


Do Jorge.



P.S.: Nas fotos, Mário de Andrade (acima) e Manuel Bandeira (abaixo).

Cartear


Olá!



Com a invenção do e-mail, a arte de cartear ficou cada vez mais rara. Por cartear, entenda-se escrever cartas. Hoje, ninguém mais se comunica com o outro através de cartas. É bem verdade que o telefone, essa coisa às vezes irritante que Grahan Bell inventou há quase 150 anos, facilitou muito a comunicação entre as pessoas. Quando a saudade aperta, basta discar um número e a voz do objeto da saudade surge luminosa do outro lado da linha (que agora não é mais linha, mas ondas via satélite). Mas ainda assim o hábito de cartas perdurava, pelo menos até uma década atrás. Digo isto porque já fui um grande carteador e, embora não seja mais tão moço assim, sou um sujeito-que-escreve a partir dos anos 90. Lembro de alguns amigos de correspondência, quem não teve um? Havia uma revista muito popular na minha adolescência, chamada "Alô mundo", não sei se ainda existe. No final da revista, lembro que havia vários endereços de pessoas que se abriam a uma, digamos, amizade por escrito. Nesse época, tive vários correspondentes. Lembro de uma garota, chamada Andréa, do Rio de Janeiro (lembro que morava na Ilha do Governador). Tenho ainda várias cartas dela embaladas numa caixa, junto com outras cartas, cartões e bilhetes. Devo dizer que nunca nos vimos. Se não, falávamos sobre o que? Ora, sobre tudo. Banalidades como o cardápio da minha festa de aniversário de 13 anos ou então sobre um fim de semana em Cabo Frio, que ela e a avó (lembro que morava com a avó e um irmão que ela dizia ser uma peste) curtiram e que ficou perdido no tempo. Coisas assim. Como ela, tive outros amigos por correspondência. Sempre o mesmo esquema: nunca nos víamos, sempre nos falávamos.

Mas o e-mail. O e-mail e também as redes sociais acabaram com esse ritual, o de pegar um papel e escrever para alguém. Depois por a carta no correio (lembro que escrevíamos "Carta social" no verso do envelope, porque o selo era mais barato!) e imaginar a outra pessoa recebendo. Esperar a resposta também, porque tão bom quanto escrever é receber uma carta. É um acontecimento! Hoje, o imediatismo rege tudo. Então, se se quer falar, posta-se um recado no orkut ou facebook, ou então um rápido e formal e-mail. Pode até ser informal, mas tem sempre aquele tom, "Olá, como vai? Saudades de você. Abraço. Fulano", essa coisa acéptica, limpa demais. Ninguém se derrama num e-mail ou num recado desses, até mesmo porque a resposta nem chega a ser curtida ou esperada. Quase instanteamente o outro responde, "Oi, vou bem. Saudades também, Fulano". Não há mistério. Não há espera nem há tensão. Não há magia nenhuma. O que é uma pena, é verdade. Pena que o verbo cartear hoje não seja mais sinônimo de escrever cartas, mas logo faça pensar em algum viciado em jogo de cartas.



Do Jorge.

domingo, 24 de outubro de 2010

O informe de Borges


Olá!



Ando bastante sumido, é verdade. Não é preguiça de escrever, posso assegurar. Também não são os afazeres, que esses sempre existem. Talvez seja uma conjunção dessas duas coisas. A verdade é que nesses dias, não tive vontade de registrar nada. Tédio? Ao contrário, prefiro pensar que me acometeu o mesmo que ao grande Campos de Carvalho, que escreveu quatro magníficos romances nos anos 50 e que, depois, simplesmente parou de escrever. A um repórter que lhe fez essa pergunta em 1997, às vésperas de sua morte, disse apenas que "estava feliz demais para escrever".

Mas hoje volto a esse espaço, onde dialogo comigo mesmo e com os poucos que leem esse blog - e sei realmente que não são muitos. Como disse certa vez, aqui traço mais um roteiro da minha vida de leitor do que da minha vida de verdade. Talvez se o fizesse, esse blog teria mais leitores. É como disse Mário de Andrade (com quem muito me identifico), "a vida alheia, sereia!". No entanto, me escondo. Prefiro mostrar outra face, também íntima, também minha, mas não tão interessante, a do Jorge Luis Verly Barbosa leitor.

E hoje, esse leitor escreve sobre outro Jorge, também Luis, Jorge Luis Borges, o genial autor argentino, que está na galeira dos meus autores de cabeceira. Outro dia, estava com meu exemplar de "Ficções" na mão e uma aluna disse, "Professor, foi o senhor que escreveu este livro?". Embevecido, só disse "Não, quem me dera. Eu apenas sou leitor, querida". Depois, pensei que também poderia dizer, "Sim, fui eu". Ora, segundo Roland Barthes, ler não é também escrever?

Esse fim de semana, resolvi reler alguns contos de Borges, esparçamente. Não houve sobre a face da Terra contista mais extraordinário e preciso como ele. Quem negará que textos como "O Aleph", "A intrusa", "O jardim das veredas que se bifurcam", "A biblioteca de Babel" e "A velha senhora" não são obras-primas? Os contos de Borges contém, a um só tempo, erudição, mistério, o mágico e a simplicidade. Como os textos policiais (e muitos textos dele têm essa temática), o final revela sempre uma enorme simplicidade, como se disséssemos, "oh, era exatamente assim que deveria terminar". Sempre imaginei Borges ditando aqueles textos, muitos à sua mãe, Leonor, já que ele ficou cego por volta dos cinquenta anos, sentando numa poltrona de sua vasta biblioteca, puxando de sua prodigiosa memória de leitor as referências aos clássicos, que permeiam seus textos.

Um dos textos relidos foi "O informe de Brodie", que dá título a uma das últimas coletâneas de contos publicados por Borges antes da morte, em 1986. O livro tem como temática a idéia do duelo, seja entre dois homens marcados pela desorna, como em "A história de Rosendo Juárez", seja entre duas mulheres artistas, marcadas pela inveja, como "O outro duelo", seja entre a lógica e ignorância, como em "O evangelho segundo São Marcos". Em "O informe de Brodie", conto que encerra o livro, temos também presente a temática de idéias que se opõem, neste caso, a civilização e a barbárie. O texto narra a história de um manuscrito, datado do século XIX, redigido por um certo missionário escocês, David Brodie, que narra os hábitos de uma fantática tribo sul-americana, os Yahoos. Com severidade, asco, curiosidade, complacência, ele vai desfiando hábitos bárbaros deste povo, como o fato de não possuírem memória, escrita, de sua linguagem ser apenas consonantal, de culturem um deus chamado Esterco e de terem um rei cego, maneta, mas que tem o poder absoluto. Ele os considera absolutamente diferentes de si, homem inglês, civilizado e ocidental. No entanto, lá pelo fim do conto, luminosamente, Brodie descobre um ponto de contato. O duelo, enfim, dá lugar à igualdade. Diz o narrador:


"Outro costume da tribo são os poetas. Acontece de um homem ordenar seis ou sete palavras, em geral enigmáticas. Não pode se conter e as diz aos gritos, de pé, no centro de um círculo que os feiticeiros e a plebe formam, estendidos na terra. Se o poema não os excita, não acontece nada; se as palavras do poeta os assustam, todos se afastam dele, em silêncio., sob o domínio de um horror sagrado (under a holy dread). Sentem que foi tocado pelo espírito; ninguém falará com ele nem olhará para ele, nem sequer sua mãe. Já não é um homem, mas um deus e qualquer um pode matá-lo O poeta, se puder, buscará refúgio nos areais do norte" (p. 92)


E não é isso que nos enlaça, a poesia? É esse o informe de Borges, a despeito de toda a sua genialidade, a nos dizer que os homens são tocados pelas palavras, por sua magia, por seu encanto e por seu horror. É mensagem que narrador, Brodie, nos envia, a de que as palavras, acima de qualquer outra coisa, servem para unir os homens, como ele percebe ao fim de sua narrativa. Como aquela tribo selvagem percebeu, por seu poetas. Como Borges, cego em sua biblioteca percebeu, em seus textos. Como eu, também tocado de beleza, nesta tarde de domingo, percebi, relendo Borges.



Do Jorge.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Viver é perigoso demais


Olá!



Não, não é minha frase-título deste post. O leitor mais atento saberá que retirei-a das páginas mágicas de "Grande sertão: veredas", do Guimarães Rosa. É que hoje senti esse perigo me rondar, como um miasma perigosíssimo: senti o medo de sentir medo de viver. Apreensivo, tentei realizar as tarefas do dia, dei minhas aulas, fiz minhas leituras, planejei o dia de amanhã. E o medo por detrás. Quando cheguei em casa, entre apreensivo e esperançoso, fui consultar meus oráculos. Parei ante a estante, fechei os olhos e, como num transe, escolhi um livro ao léu. Caiu-me às mãos Virginia Woolf, a autora inglesa que matou-se por não suportar "a beleza do mundo". O livro? "Mrs. Dalloway", com aquela maravilhosa rosa vermelha na capa. Abri, como quem abre a Bíblia à cata de um tema para uma platéia ávida de sabedoria. Juro, tive que me apoiar na borda da estante para não cair quando li o que li. Quando digo a vocês que os livros são como oráculos, Tirésias nesses tempos mais que cegos, é disso que falo. Hoje, a profetiza Virginia disse:


"Passava como a lâmina lânguida de uma navalha através de todas as coisas; e ao mesmo tempo ficava do lado de fora, o olhar. Tinha sensação permanente, enquanto olhava para os táxis, de estar longe, muito longe, no mar, e, sozinha, tivera sensação de que era muito, muito perigoso viver um só dia que fosse". (p. 12)



Embora a sentença seja dura, me consolei. Relaxei o corpo. Como disse Woolf, como disse Guimarães Rosa, viver é perigoso. Nos resta correr o risco, viver o perigo. E atravessá-la, a vida.



Do Jorge.

domingo, 19 de setembro de 2010

Pelo vídeo, "Os sentidos sentidos"


Olá!



Tenho aqui em casa uma quantidade enorme de fitas de vídeo. Como sabem, sou dos anos 90, fui educado pelo vhs. Os filmes clássicos, eu os vi através dele. E quando descobri que se podia gravar as coisas da tv por ele, foi a glória. Não passava um dia sem gravar um programa de tv, de coisas raras e hoje cults (como a série Concertos Internacionais, da Globo) à coisas fúteis, como as vídeo-cassetadas do Faustão. E fui reunindo coisas, acumulando, como gosto de fazer, ao longo do tempo. E reuni essa pilha de fitas, além daquelas que fui comprando (filmes, em sua maioria) ou ganhando dos amigos que iam trocando o vídeo pelo dvd e não as queriam mais. Até que um dia, meu próprio vídeo estragou. Fui à cata de conserto, mas não havia mais peças disponíveis para ele. Encaixotei o bicho e as fitas ficaram esquecidas na estante. Também, veio o dvd, que abarcou tudo: os filmes que tinha, podiam ser encontrados agora nesse formato que, segundo dizem, nunca se estraga. O que por um lado é excelente, já que me diziam que as fitas tinham uma vida útil de 20 ou 25 anos, no máximo, enquanto um dvd, se bem conservado, dura ad infinitum. Acabei me consolando com o dvd - e fui acumulando dvds, hoje os tenho em maior quantidade que as fitas. Mas elas persistiram, é claro.

E eis que esse fim de semana, um milagre - só posso chamá-lo assim. Um amigo veio aqui e viu as fitas, um dia desses. Ele nada disse. Voltou ontem e me trouxe de presente, advinhem, um vídeo-cassete. Fiquei extático! Ele disse, "Funciona direitinho, o cabeçote está novo em folha". Juro, nunca pensei que uma palavra obsoleta, do passado tecnológico, fosse me trazer tanta alegria como esta, "cabeçote". Nem preciso dizer que passei a tarde e a noite revendo fitas, catalogando, fazendo marcas nelas para poder me lembrar das coisas que gravei e que nem sabia mais que tinha, raridades que agora posso rever: o show "Marítimo", da Adriana Calconhoto, que gravei em 1997, no Multishow, num domingo chuvoso e repleto de beleza; a bela entrevista que Jorge Amado e Zélia Gattai deram a Pedro Bial, quando ele apresentava o Espaço Aberto, da Globo News, em fins dos 90; o Concerto para Harpa de Gabriel Pierné, com Marielle Nordmann, gravado em 1998, na Tv Cultura (e que eu vivia procurando no Youtube); a escolha do papa Bento XVI, em 2004, que matei aula no mestrado para assistir e gravar, só para ter a emoção de ver, mesmo que pela tv, a fumaça branca subindo pelos céus do Vaticano (e como chorei, emocionado, por participar, como espectador, daquele momento histórico); o último concerto do Karajan, em Berlim, gravado por mim em 1993, uma das primeiras coisas que gravei quando ganhei um vídeo. E zil outras coisas retornaram pela tela da tv, reproduzidas por esse aparelho que para mim agora adquiriu o status de mágico, o vídeo-cassete.

Mas uma das coisas que voltaram e que me fizeram sair de mim, por instantes, foi uma fita velhíssima (1992) que ganhei de um colega do mestrado. Um dia, veio ele com uma fita e disse, "Já que vais escrever tua tese sobre o Caetano, isso vai servir". Era o especial da Manchete (vocês lembram da TV Manchete???), em comemoração aos 50 anos do Caê. Vi com entusiasmo a longa entrevista do baiano e os números musicais do show "Circuladô", que também tenho na íntegra, num outro cassete. E ontem, foi uma das coisas que logo fui rever. E relembrar. Nossa, tem coisas geniais ali, como d. Canô conhecendo o neto Zeca, então recém-nascido, e o Caetano explicando que "Debaixo dos caracóis dos seus cabelos", do Roberto Carlos, foi feita para ele enquanto estava no exílio londrino nos anos 70. E há a mágica leitura do poema "Os sentidos sentidos", do Augusto de Campos. Caetano, com um fundo de flores, lê, com os óculos minúsculos, essa pérola de "Viva vaia", com dignidade e beleza. É estonteante, de tão mágico.

E encerro esse post com ele, o poema. Ponho também o link do vídeo no Youtube, que depois descobri disponível:http://www.youtube.com/watch?v=SDAve2_1lM0 Claro, na minha velha fita é melhor. Aqueles chiados e riscos na tela me remetem ao passado, à memória. Que o youtube recuperou. Mas que vídeo fez em mim imortal.



OS SENTIDOS SENTIDOS


o amor que a mim comove
e a qualquer homem
o baixo ventre
o baixo ventre
e também os seios às mulheres
o amor que enverniza a flor
o mal
a fúria de dois leões
que ferem a pele do amor
e não o cerne do amor
que a mim comove
o alto coração
como alto ar que aura
a fronte da acrobata
é lenda?


podes ser falsa
e oscilas como o riso
da fímbria do rictus
de um olho de vidro
do prateado poeta
para a vida
ou como a serpente estendida
sob a escama sibilina
come a flauta
o poeta
alisa tua seda
é lenda?


o nome quer brilhar a língua
língua é lenda
a própria lenda é lenda
além da.
(Augsto de Campos, IN: "Viva vaia")



Do Jorge

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Um poema


Olá!





Vida corrida, meus amigos. Tem uma cara que não posto nada - e hoje só apareci mesmo porque sobrou uma fresta no meu dia (e hoje é 7 de setembro, dia da tal independência). Apareci também porque precisava compartilhar o poema "James Joyce", de Jorge Luis Borges (na foto acima), que li hoje de manhã, quando pesquei meu já surrado exemplar de "Elogio da sombra", do autor argentino. Os dois dispensam apresentações, o poetizadp e o poeta: Joyce é, certamente, o mais inventivo de todos os autores do século XX, com seu livro-monumento que é "Ulisses" e com seu livro-labiririnto, que é "Finnegan's wake"; e Borges vem na sua esteira, o autor cego entre os que enxergavam, mas que foi luz entre nós, os cegos.

Pois bem, li e compartilho a dádiva aqui, com vocês:



JAMES JOYCE





Num dia do homem estão os dias
do tempo, desde aquele inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias,
até aquele outro em que o ubíquo rio
do tempo terrenal torne à sua fonte
que é o Eterno, e se apague no presente
o futuro, o ontem, o que agora é meu.
Entre a alva e a noite está a história
universal. Do fundo da noite vejo
a meus pés os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me, Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia.

Cambridge, 1968.

(Jorge Luis Borges, "Elegio da sombra", p. 12)





Poderia tecer comentários mil sobre este poema, mas seriam inúteis: ele se diz sozinho. É só pensar no verso "Entre a alva e a noite está a história / universal". E não é isso que é a vida? Não é essa a única verdade?





Do Jorge.

domingo, 29 de agosto de 2010

Um filme profundamente humano


Olá!



Toda lista contendo os maiores autores do século XX certamente contará com o nome do italiano Primo Levi. Sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, Levi fez dessa condição o pilar central para a construção de uma obra que se debruça sobre a banalidade do mal e sobre a condição do homem diante dele. De certo modo, ele foi a negação da assertiva de Adorno, o filósofo alemão, quando este, ao final da Segunda Guerra e a revelação do horror que foi o Holocausto, disse: "A poesia é impossível depois de Auschwitz". Pois Primo Levi representa extamente o contrário. Porque seus livros refletem justamente a possibilidade transformar aquela experiência em beleza. Ainda que sombria, em alguns momentos. Mas sobretudo humana. Como se lê em "Os afogados e os sobreviventes", "É isto um homem" e "A trégua".

Pois bem, na semana passada, ao terminar o estudo da Segunda Guerra com meus alunos da 8ª série, resolvi fazer uma experiência meio arriscada: exibir para eles o filme "A trégua", de Francesco Rossi", adaptação cinematográfica do livro homônimo de Primo Levi, com o excepcional ator John Turturro, no papel de Levi, e Rabe Serbedzija (que alguns conhecem de "Batman begins"), no papel do excêntrico grego Mordo Nahum, um dos companheiros de Levi na volta para casa. A história, realíssima, conta a viagem de Levi e seus companheiros de Auschwitz depois que os russos libertam o campo, em fevereiro de 1945, no finzinho da guerra. Por que arriscada? Ora, em tempos de "Avatar", da refilmagem (inútil, por sinal) de "Karatê Kid" e o besteirol de "High School Music", pensei que jamais meus meninos achariam um filme assim, sem qualquer apelo holywoodiano , interessante. Ledo engano meu. O filme tocou fundo na sensibilidade deles - e foi um tapa na cara do meu pré-conceito em relação ao que meus alunos elegiram como bom. Durante todos os 117 minutos, ouvi pouquíssimos sons (e alguns, entre eles,que bem poderiam ser de choro), pois eles estavam como hipnotizados pela história de Primo, um homem que poderia ter desistido de viver depois de passar pela pior das experiências humanas, como é estar num campo de concentração. No entanto, ao ser liberto, é a vida que ele tenta redescobrir. Por isso tudo para ele tem um sabor especial: uma refeição decente, alguém que toca violino num bar, um par de sapatos novos, o beijo de uma mulher. Coisas banais em tempos comuns, mas profundamente belas aos olhos de um homem que sobrevivei às trevas e agora redescobre a luz. Em suma, um belo filme, que meus alunos adoraram. Por que? Porque é profundamente humano. Como eles.



Do Jorge.

domingo, 22 de agosto de 2010

Domingo


Olá!



O dia está assim estranho, nem quente, nem frio. Nem sol, nem chuva. Uma manta chata de fumaça e nublado no céu lá fora. É de deixar qualquer cristão irritado. Fico pateta, andando pela casa, à procura - do quê? Paro ante a estante, à guisa de consolo, talvez algum oráculo resolva o enigma deste dia, tal o I-Ching.

E vejam só a resposta que me vem, desta vez através da sempre iluminada lira drummondiana:



A PALAVRA MÁGICA



Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida,
a senha do mundo.

Vou procurá-la.
Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.


(Carlos Drummond de Andrade, "Discurso de primavera e algumas sombras", p. 109)



Não é de salvar o domingo de qualquer um? Milagre não sei se é, mas acabo de olhar pela janela: o sol acaba de abrir, em amarelo vivíssimo...



Do Jorge.

sábado, 21 de agosto de 2010

Heloísa Buarque de Hollanda


Olá!







Formidável a entrevista da professora Heloísa Buarque de Hollanda ao programa "Umas palavras", do Futura. Grande teórica da nossa cultura, fundadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ, Heloísa intepreta como poucos o hibridismo cultural que nos cerca, desde os anos 60, quando começou sua carreira intelectual. No mestrado, entrei em contato com sua obra, através da professora Stelamaris Coser, que me indicou o maravilhoso "Tendências e impasses", uma análise do feminismo e seus impactos na cultura brasileira. Depois, li "Impressões de viagem", fundamental leitura da década de 70, considerada a época do desbunde, que viu nascer o cinema de Sganzerla, a poesia marginal (que ela coligiu na antologia "26 poetas hoje", a música dos Dzi Croquetis, tanta coisa genial... Gerações de intectuais foram formados por essa grande professora, que é, além de brilhante, vidrada em novelas, nos netos e nos cachorros.

Por isso, reencontrá-la hoje de manhã na TV foi tão bom, ela que é a eterna musa (título que odeia) da nossa crítica. Vai aí uma dica: ela lançou recentemente "Escolhas: uma autobiografia intelectual", que pode ser baixado (não é pirataria, viu) gratuitamente. Eis o link: http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br. O livro é fundamental para quem quer compreender o percurso intelectual dessa mulher, como ela mesma diz, "meio esquisita". Mas absolutamente fantástica.





Do Jorge.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A duração do dia


Olá!



Acabo de fechar, maravilhado, as páginas do novo livro de Adélia Prado, "A duração do dia". Posso dizer que foi uma experiência poética e mística, a um só tempo - e quem é leitor da Adélia sabe bem que, na poesia dela, essas duas convivem num conluio santo e belo. Não sou um religioso praticante, mas tenho uma vivência com o sagrado. E essa vivência vem, muitas vezes, da leitura, seja de poesia, seja da própria Bíblia, também ela repleta de beleza poética - e o que é, por exemplo, o Livro de Jó, se não um extraordinário poema sobre a experiência da dor humana?

E com Adélia Prado, refaço essa ligação, me religo ao alto, ao divino. Ela, mais uma vez, me conectou com o que há de Deus em cada um de nós, me fez ver como Ele nos espreita, como ele está em cada fragmento da nossa rica vivência neste plano. Porque foi a voz Dele que escutei através dela, ela que O filtra por sua experiência de poeta e de mulher, não tendo pudores em apresentá-Lo seja pela beleza da flor, seja pelo gozo do corpo. Porque, como ela costuma dizer, vida e experiência mística são uma só coisa, animal e anïma. São indissociáveis. Se espraiam por toda a nossa vida. Estão presentes em toda a duração do dia.

Como texto do dia, posto um poema do livro, pleno de beleza:




MAIS POTENTE QUE HORMÔNIOS


Falei sem me dar conta
de que falava coisa teosófica:
Tudo o que eu peço Deus me dá.
Desde sempre vivi na eternidade.
Poeta velho é como o Rei Davi,
donzelas são escolhidas
para lhe aquecer os ossos.
Todas o querem, ainda que, incendiadas,
só lhe restem palavras.
(p. 52)




Do Jorge.

domingo, 15 de agosto de 2010

A palavra de Lygia


Olá!



Li hoje uma entrevista concedida em 1998 pela Lygia Fagundes Telles, uma das autoras das quais conheço a obra de fio a pavio. Entre reminiscências pessoais, posicionamentos políticos e reflexões sobre o papel do escritor, há uma confissão que me comoveu. Perguntada sobre seu relacionamento com a crítica e o leitor, Lygia diz: "Se escrevo, estendo para você uma ponte, seja você um crítico ou um leitor comum. Nessa hora é como se eu dissesse, Venha. A palavra é uma ponte através da qual eu tento conseguir o amor do próximo".

Poucas vezes li uma definição tão exata do que seja escrever, esse ofício misterioso. Às vezes, chego a pensar que nasci com uma espécie de defeito, que explicaria essa compulsão pela palavra. Escrever, às vezes, é uma angústia, mas hoje fiquei reconciliado com este verbo. Porque, ao escrever, chegamos ao Outro. Buscamos o amor do próximo, segundo Lygia. Não me entenda, me ame, é o que representa a escrita. E é o que diz Lygia, ao final, "Eu sempre digo que mais importante do que a compressão é o amor".



Do Jorge.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Gal, Dylan e Caetano


Olá!




Hoje pus na vitrola o disco que Gal gravou naqueles loucos idos de 1977, o último de sua fase hippie (depois, ela se transformaria na estrela do showbizz tropical, com álbuns a um só tempo tecnicamente perfeitos e altamente comerciais, como "Fantasia", "Tropical" e "Aquarela do Brasil"): "Caras e bocas". Afinada e festiva, ela começa entoando a faixa-título com o desleixo-cuidado típico dessa fase, a voz de uma cantora que, mesmo vivendo e cantando o desbunde dos 7o, sabe que é dona de uma "nota brilhante de cristal, transparente". E, dali, ela passeia por pérolas como "Tigresa" (intensa), "Solitude" (dolorosa), até "Um favor", de Lupicínio Rodrigues, indicando o caminho que, dali em diante, seguiria: a de eterna intérprete da canção e do coração do Brasil.

Mas o post de hoje não é apenas sobre a Gal. Ela é o mote. Isso porque, em meio a esse disco genial que é "Caras e bocas", há uma canção que, re-ouvida, me conectou (pela milhonésima vez) a dois gênios, que sempre reverencio: Bob Dylan e Caetano Veloso. Gal escolheu, bem no clima do disco, a canção "It's all over now, baby" e pediu uma tradução-adaptação ao seu "muso eterno", Caetano. O resultado? Uma beleza, claro. No disco, soa sublime, combinando intensidade passional, clareza e afinação vocal. Gal vai de nota em nota, lapidando as pepitas de ouro da poesia de Dylan-Caetano, transformando a dor (porque é uma canção sobre o fim do amor) em cristal. Ouvir, como digo sempre, é um prazer difícil de narrar, mas letra, poética, tanto via Dylan, como via Caetano, cabe aqui, como texto do dia, para deliciar os estômagos ávidos de poesia neste fim de dia:



NEGRO AMOR ("It's all over now, baby")


Vá, se mande, junte tudo que você puder levar
Ande tudo que parece seu é bom que agarre já
Seu filho feio e louco ficou só
Chorando feito fogo à luz do sol
Pois alquimistas já estão no corredor
E não tem mais nada, negro amor
A estrada pra você é um jogo e ainda essência
Junte tudo que você conseguiu por coincidência
E o pintor de rua que anda só
Desenha maluquice em seu lençol
Sob seus pés o céu também rachou
E não tem mais nada, negro amor
Seus marinheiros mareados abandonam o mar
Seus guerreiros desarmados não vão mais lutar
Seu namorado já vai dando o fora
Levando os cobertores, e agora?
Até o tapete sem você voou
E não tem mais nada, negro amor
As pedras do caminho, deixe para trás
Esqueça os mortos, que eles não levantam mais
O vagabundo esmola pela rua
Vestindo a mesma roupa que foi sua
Risque outro fósforo, outra vida, outra luz, outra cor
E não tem mais nada, negro amor

(Bob Dylan / Versão: Caetano Veloso)




Do Jorge.



P.S: A capa original do disco, infelizmente fora de catálogo... mas, procurando aqui e ali, aparece fácil na net...

domingo, 8 de agosto de 2010

Um consolo


Olá!



Busco agora um consolo para a alma, para aliviá-la um pouco das dores do mundo. E ele vem, sempre vem. Dessa vez, via Camões e sua maravilhosa "Lírica". Ei-lo:



"Se só de ver puramente
Me transformei no que vi,
De vista tão excelente
Mal poderei ser ausente,
Enquanto o não for de mi.
Porque a alma namorada
A traz tão bem debuxada
E a memória tanto voa,
Que, se a não vejo em pessoa,
Vejo-a na alma pintada".
(Lírica, p. 64)



Do Jorge.

sábado, 7 de agosto de 2010

A estante




Olá!






Já disse aqui que sou vidrado em estantes. Vivo fuçando fotos na internet de estantes alheias. Porque uma estante é, antes de tudo, um aglomerado de memórias. As pessoas põe ali um pouco (ou muito) de sua história pessoal. Entram livros, discos, objetos, fotografias, lembranças que se acumulam ao longo de uma vida. Por isso hoje resolvi postar uma foto da minha estante. É meu mundo. É o lugar ao qual recorro sempre que preciso de de um alento, de diversão, de socorro mesmo. Às vezes, longe daqui de casa, súbito penso nela, nos livros e discos amados, como pessoas com as quais posso contar. Uma estante é fiel. A minha é. Deixa-me voltar a ela, então.






Do Jorge.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Adélia está de volta


Olá!



Li uma notícia na internet que me deixou em alfa: a poeta Adélia Prado vai lançar um livro novo agora em agosto, pela Record (a editora, não a tv, pelo amor!). Trata-se de "Campo de névoa", o primeiro livro de inéditas da autora desde "Oráculos de Maio", lançado em 1999. Há algum tempo, escrevi um post aqui com a pergunta, "Onde onda Adélia Prado?", e agora, eis a resposta. Fiquei louco de felicidade e logo corri às estantes, buscando um texto dela para postar aqui, como poema do dia, enquanto não sai o livro novo. Abri e eis o que me disse o oráculo:



A FORMALÍSTICA



O poeta cerebral tomou seu café sem açúcar
e foi para o gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário.
Faz três horas que estuma as musas.
O dia arde. Seu prepúcio coça.
Daqui a pouco já começam a fosforecer coisas no mato.
A serva de Deus sai de sua cela à noite
e caminha na estrada,
passeia porque Deus quis passear
e ela caminha.
O jovem poeta,
fedendo a suicídio e glória,
rouba de todos nós e nem assina:
"Deus é impecável".
As rãs pulam sobressaltadas
e o pelejador não entende,
quer escrever as coisas com as palavras.

(IN: "Poesia reunida", p. 376)



Beleza, não? Acho genial essa idéia de que as coisas não são escritas com as palavras. Porque, de verdade, não são.




Do Jorge.

domingo, 1 de agosto de 2010

Boa Esperança do Espírito Santo


Olá!



Carlos Drummond de Andrade escreveu, nostálgico, naquele que é um de seus poemas mais conhecidos (e mais pungentes), "Confidência do Itabirano": "Itabira é só um retrado na parede, / mas como dói!". Esse poema sempre me comoveu, por se tratar da palavra sincera de um poeta que, a despeito de toda a fama conseguida e da certeza de construir uma obra que alçou a perfeição, volta o seu olhar para trás, para a província, o lugar de onde veio. O olhar de quem reconhece que é, "principalmente, Itabirano".

A verdade é que todos viemos de algum lugar. Mesmo que estejamos em Nova York, Roma, Paris, São Paulo ou mesmo São Mateus, trazemos conosco as raízes, como árvores deslocadas, às vezes à força, mas que carregam consigo o signo original, a raiz pregada ao tronco.

E quão maravilhoso para mim foi descobrir, esta semana, encravado no meio do livro "Transpaixão", do poeta Waldo Motta, esperancense como eu, e que faz um sucesso danado por aí, o poema "Boa Esperança do Espírito Santo". Foi como um tapa na cara, uma sacudela na espinha, um bafejo forte de ar, que me trouxesse de volta o cheiro da minha terra. Que está logo ali, a 90 km de São Mateus, mas que, pelos caminhos que nos leva a vida, vai amarelando, como um retrato velho (como aquele na parede, ô Drummond), diluído pela distância. E pela ausência. Estou sempre lá, é certo, minha família (outro elo original) está lá, mas eu não estou mais lá, cotidianamente, vivendo nela. Não respiro mais aquele ar (puro, límpido como é o ar de nossa terra) todos os dias, não piso mais aquele chão tão caro como o chão da minha própria infância. Daí a beleza daquele poema. Eu o li em voz alta, com a voz clara, para mim e Mary. Senti, ao final, o nosso suspiro, carregado de recordações, indo fundo na memória, indo parar lá naquele pedaço de terra no mundo, o nosso lar, "Boa Esperança do Espírito Santo":



Boa Esperança, dom
que me coube e partilho.
Embutido em teu nome,
descobri o meu destino:
combater a própria morte
e o seu reino de mentiras.

Norte espírito-santense,
Boa Esperança, aqui
meu segredo se desvenda:
quem eu sou e a que vim.

(Waldo Motta, "Transpaixão", p. 46)




Do Jorge.
P.S.: A foto? Pedra da Botelha, símbolo de Boa Esperança. Não é o Everest, sei. Mas tem a mesma beleza, a mesma que ele o tem para quem vive no Himalaia. A mesma que tem para mim a Botelha, signo da minha terra.

sábado, 17 de julho de 2010

Leituras semanais II


Olá!



Terminei anteontem de ler "O esqueleto na lagoa verde", mas como estava na casa dos meus pais, acabei não postando minhas impressões sobre o livro. O que posso dizer? Uma leitura interessante, magnética e que envereda por outros caminhos que não o apenas o destino do coronel Percy Fawcett.


Longe de elucidar (ou tentar elucidar) o mistério que cerca o desaparecimento do aventureiro inglês, o livro discute, por um lado, o sonho do El-dourado brasileiro, plantado no imaginário popular desde que, em 1753, um bandeirante paulista diz ter encontrado um cidade fantástica e reluzente no coração do Brasil. Por outro lado, procura também discutir a questão indígena, apontando, inclusive, soluções para a sobrevivência do índio e de sua cultura, como, por exemplo, a criação de um parque onde as etnias restantes pudessem ter uma nova chance - e, vejam, o livro é de 1952, o que torna profética a idéia de Callado, já que, em fins dos anos 60, e por iniciativa dos irmãos Villas-Boas, é criado o Parque Nacional do Xingu!


Quanto ao coronel Fawcett? Tudo ainda é mistério, quase cem anos depois. O livro não o elucida, como disse, mas lança um pouco de luz sobre a personalidade tenaz desse inglês que, a despeito dos perigos, embreenhou-se na selva amazônica em busca da "cidade dourada". Antônio Callado, apoiando-se em relatos do filho de Fawcett, Brian, em livros - como o do inglês Dyott, que refez a viagem de Fawcett - e nas entrevistas realizadas em 1952 com os índios Calapalo - que conviveram com Fawcett e que, muito provavelmente, o mataram -, procura humanizar o aventureiro, mostrando que, muito além de desejar riqueza e fama, o que o movia era a aventura.
Foi por ela que ele empreendeu, em 1925, a viagem expedicionária à Serra do Roncador. Viagem da qual nunca voltou, mas que acabou por imortalizar sua aventura, que foi dar em personagens como o intrépido Indiana Jones, por exemplo.
Do Jorge.
P.S.: A foto acima mostra Fawcett e Raleigh Himmel, amigo de seu filho Jack. Juntos, os três partiram para selva em 1925, de onde nunca regressaram.