quarta-feira, 30 de junho de 2010

Loucura


Olá!




Hoje, um poema só pra mim, para exorcisar meus fantasmas de junho (coisinhas que só eu entendo): "Loucura", do Silviano Santiago.



LOUCURA



Eram muitos os loucos então:
em cada quintal,.
correntes para o acesso.
Em cada fundo de quintal,
uma sombra suja entre as árvores,
sombra adulta pastando,
armando arupuca
de pegar passarinho.


A família o protege
e só não o esconde dos íntimos.

(IN: "Crescendo durante a guerra numa província ultramarina", p. 83).



Do Jorge.

domingo, 27 de junho de 2010

Meu segredo mais sincero





Olá!




Uma grata surpresa este fim de semana foi o disco "Meu segredo mais sincero", da Leila Pinheiro. Trata-se de um songbook dedicado ao Renato Russo, compositor que a Leila frequenta constantemente. Com sua afinação e elegância vocal características, a cantora paraense passeia por canções como "Índios", "Angra dos Reis", "Metal contra as nuvens", "Teatro dos vampiros" e "Há tempos", com categoria e reverência à obra do Renato, de quem ela foi amiga pessoal. Há no disco, ainda, a a comovente "Hoje", canção composta pelos dois e que aqui ganha uma versão luminosa.



É uma viagem afetiva pela memória, sobretudo no meu caso, que cresci nos anos 90 alimentado pelas canções da Legião, canções que sempre deixam a sensação de que "foram escritas para nós mesmos". E por nós mesmos. E como o poema do dia, posto uma canção presente no disco, que é, para mim, uma das mais belas reflexões sobre a juventude contraposta à passagem imperiosa do tempo, "Tempo perdido". Sempre que sinto que o tempo avança sobre mim, com (no dizer de Nélida Piñon) sua "seta de prata", gosto de repetir o mantra do Renato: nada importa, porque gosto de imaginar que ainda "somos tão jovens!".
TEMPO PERDIDO

Todos os dias quando acordo
Não tenho mais
O tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo...

Todos os dias
Antes de dormir
Lembro e esqueço
Como foi o dia
Sempre em frente
Não temos tempo a perder...

Nosso suor sagrado
É bem mais belo
Que esse sangue amargo
E tão sério
E Selvagem!
Selvagem!Selvagem!...

Veja o sol
Dessa manhã tão cinza
A tempestade que chega
É da cor dos teus olhos
Castanhos...
Então me abraça forte
E diz mais uma vez
Que já estamos
Distantes de tudo

Temos nosso próprio tempo
Temos nosso próprio tempo
Temos nosso próprio tempo...

Não tenho medo do escuro
Mas deixe as luzes
Acesas agora
O que foi escondido
É o que se escondeu
E o que foi prometido
Ninguém prometeu
Nem foi tempo perdido
Somos tão jovens...

Tão Jovens!
Tão Jovens!...

(Renato Russo)




Do Jorge.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Silviano Santiago


Olá!



Tenho lido às pampas esta semana! Explico: como tenho tido picos de hipertensão, meu médico achou por bem me deixar de molho em casa. Concedeu-me uma salutar licença médica, longe de fortes emoções. Traquilidade, eis o que me receitou ele. Aproveitei, claro, para ficar em casa e colocar algumas leituras em dia. Depois de "O reencontro", sobre o qual falei ontem, hoje devorei um livro recém comprado num sebo da internet, que há tempos vinha correndo atrás: "Crescendo durante a guerra numa província ultramarina", do Silviano Santiago. Sempre fui um leitor costumaz do Santiago, tanto da sua obra literária, quanto de sua obra teórica, que me serviu de aporte muitas vezes durante os textos construídos no mestrado. Escrevi, inclusive, uma monografia, orientada pelo professor Luís Eustáquio Soares, sobre "Histórias mal contadas", um dos livros de contos do Silviano. É, pois, um autor que eu frequento sempre que posso.

Aproveitei, pois, a folga para lê-lo. E o li de uma sentada, como geralmente faço com os livros de poemas. Não que se trate de um livro fácil, nada disso. A poesia de Silviano Santiago, a exemplo de "Cheiro forte", é densa e sempre reflexiva. No caso de "Crescendo...", o autor faz um revisão das décadas de 30 e 40, período em que crescia num Brasil polarizado entre o entreguismo e a influência norte-americana e o nacionalismo e a penetração do ideário comunista. Ou seja, trata-se de uma obra que dialoga com a História, mas que também cria um discurso meta-histórico, já que se propõe a ser uma visão particular, individual, de alguém que cresceu numa província ultramarina em tempos históricos tão bicudos. Tudo, no entanto, é narrado com a pena fina da ironia, com um certo olhar que vai além das lentes azuis (do entreguismo) ou vermelhas (do nacionalismo), para ficar num delicioso entre-lugar do discurso. De onde se tem, sempre, uma visão ampla e aberta das coisas. E é a que Silviano apresenta, uma visão polissêmica desses anos tão frequentemente polarizados que o autor procura costruir neste pequeno grande livro.

Como se pode ler em "Pica-pau amarelo", poema do livro e que fica também como o texto de hoje:


PICA-PAU AMARELO


Emília luta
contra Tarzã.
Lobato
contra o entreguismo.
Uma questão
de patriotismo.


O que que é isso,
meu Deus?
(p. 51)



Do Jorge.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Um pequeno belo livro



Olá!








Ontem, escolhendo um livro para levar para cama, decidi-me por "O reencontro", de Fred Uhlman, autor alemão, de pouca expressão aqui no Brasil. O livro, o trouxe da biblioteca da escola e há tempos estava sobre a mesa, esperando a hora oportuna de lê-lo. Senti que ontem era a hora.


E eis que, desde as primeiras páginas, senti-me diante de uma pequena obra-prima! Não só pela extrema simplicidade da escrita, mas também pela comovente história que é contada: dois adolescentes se conhecem na escola em Sttutgart, na Alemanha pré-nazista. Hans, judeu e filho de um médico eminente da cidade, vive num mundo particular e inalterado pelas questões e premências políticas da época, e Konradin, alemão, membro de uma das famílias mais tradicionais da nobreza do país e com um enorme senso de classe. Esses dois meninos, de personalidades aparentemente díspares, se tornam amigos e esse amizade os protege de todas as reviravoltas de seu tempo. Lealdade, respeito, admiração e honradez são sentimentos que um aprende a cultivar na companhia do outro e, embora os tempos sejam mais do que sombrios (falamos da ascensão de Hitler e do Nazismo), esses dois adolescentes tentam viver plenamente, se tornando nada menos que Homens. Mesmo sentindo-se atraído pelo ideário de Hitler, Konradin tenta a todo custo proteger seu amigo, que é judeu e, por isso, alvo fácil da ira dos alemães. A História os separa por trinta anos, até que, nas páginas finais, se dá um comovente reencontro.


Uma beleza de livro, sem dúvida. Mais que indicado, sobretudo para aqueles amam a Humanidade com paixão e que acreditam, ainda, nela e em capacidade de regeneração, a despeito dos negros tempos em que vivemos.








Do Jorge.









terça-feira, 22 de junho de 2010

Saramago II


Olá!



Passando os olhos por alguns trechos das obras de Saramago que tenho aqui na biblioteca, me deparo com esta maravilha de texto, de "O Evangelho segundo Jesus Cristo", talvez o mais brilhante dos romances do autor português (e que fica como o texto de hoje):



"O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso de suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram o chorar, e chorará por este mesmo e único motivo. Envolto em panos, repousa na manjedoura, não longe do burro, porém não há perido de ser mordido, que ao animal prenderam-no curto. Zelomi saiu fora a enterrar as sencundinas, ao tempo que José se vem aproximando. Ela espera que ele entre e deixa-se ficar, respirando a brisa fresca do anoitecer, cansada como se tivesse sido ela a parir, é o que imagina, que filhos seus próprios nunca os teve". (p. 83)

Precisa mais?



Do Jorge.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Saramago

(José Saramago - 1922/2010)

Olá!



Perda irreparável para o mundo das letras foi a morte do escritor português José Saramago, ocorrida na sexta, dia 18. Vencedor do Nobel de 1998, Saramago era, sem dúvida nenhuma, o mais celebrado dos autores de nosso idioma. Conhecido pelo estilo particularíssimo de narrar e pela construção de brilhantes parábolas que bem ilustram a nossa condição contemporânea, Saramago vai deixar mais do que saudades. Vai deixar um espaço difícil de ser preenchido, o espaço de um escritor lúcido e ferrenho defensor daquilo que costumamos chamar de Sentido de Humanidade.

Bravo, Saramago!



Do Jorge.

domingo, 20 de junho de 2010

Morte em Veneza


Olá!



Revi neste fim de semana o filme "Morte em Veneza", de Luchino Visconti. Nem preciso dizer que o filme é de uma beleza estonteante. O vi pela primeira vez há muitos anos, quando era frequentador de uma locadora de clássicos na cidade de Nova Venécia, onde estudava piano. Locadora de clássicos é um floreio meu, claro. Havia as baboseiras e os blockbuster de sempre. Mas havia também uma luminosa prateleira com alguns dos melhores filmes da história do cinema. Foi lá que descobri preciosidades como "Ran", do Kurosawa, ou o "Sétimo selo", do Bergman. E também este "Morte em Veneza".

Recentemente escrevi aqui no blog sobre o livro do Thomas Mann, que serve de inspiração ao filme de Luchino Visconti. Trata-se da história de Gustav von Aschenbach, que no romance é um poeta em crise criativa e que no filme se torna um compositor nervosamente esgotado, que busca refúgio na bela cidade italiana. O que é muito emblemático, já que Aschenbach é um homem obcedado pela beleza, embora sinta-se cada vez mais distante dela. E longe dela, ele definha.

Até que ele encontra Tadzio. Tadzio é um belo jovem polonês, de 14 anos, hospedado com a família no Lido, onde está Aschenbach, e por quem o compositor fica hipnoticamente apaixonado. Mesmerizado. Talvez porque o menino seja a perfeita encarnação da beleza procurada por toda a uma vida. Ou talvez porque aquela seja a última oportunidade que Aschenbach tenha para sentir o amor. E é nesse amor que ele se consume, literalmente, ao longo do filme.

Talvez uma das mais belas cenas do cinema seja a seqüência final de "Morte em Veneza", quando Aschenbach, debilidado e já tocado pela morte, se senta na beira da praia e entrevê Tadzio na linha do horizonte, no mar. O menino estende os braços, como um centauro, e esta visão, que é a própria personificação da beleza, é a última coisa que o compositor vê antes de morrer, a um só tempo feliz por encontrar o que buscou a vida inteira, e triste por nunca poder tocá-la. A trilha sonora, o Adaggieto da Quinta Sinfonia de Mahler, contribui para tornar a cena ainda mais intensa, magnética, de uma beleza poucas vezes vista e igualada na tela.

Por tudo isso, nem preciso dizer que o fim de semana foi salvo. E que o filme vale, como costumo dizer, por um dia no Paraíso.



Do Jorge.