terça-feira, 26 de agosto de 2014

De leituras, biografias e Foucault


Olá!


Numa ponta, Adorno (a "Máxima Muralha"); noutra, os estudos de Musicologia e Canção (grande parte deles em inglês, porque nenhuma pedreira se vence duma picaretada só): eis como estão minhas leituras nestes dias, por conta dos dois cursos que estou fazendo neste semestre. São prazeres, claro. Mas prazeres profissionais, preciso dizer, porque ligados ao que ando pensando/discutindo/escrevendo. Mas sempre encontro espaço dar uma pulada de cerca, é de lei: nesse caso, a biografia Michel Foucault: 1926-1984, escrita por Didier Eribon e publicada em 1988 (aqui, saiu pela Companhia das Letras em 1990 numa edição tão esgotada quanto preciosa [é vendida por aí, em sebos, por 150, 200 pratas] e que, felizmente, me caiu às mãos via Biblioteca Central da UFES). O livro me ganhou de cara. Sem ser foucaultiano de carteirinha (aliás, ando numa crise conceitual tão brava que nem sei mais o que cargas d'água sou em teoria), as ideias do francês sempre me interessaram: a noção de discurso e poder, de sanidade, loucura e normatização social, a função autor, ad infinitum. Vira e mexe, Foucault aparece e é sempre útil, tamanha atualidade de seu pensamento/discurso. Aliás, pensando agora no aspecto da perenidade do pensamento pós-estruturalista, talvez seja ele o que menos envelheceu, quer dizer, o que por sua palavra ainda dá conta de explicar muito do que hoje está aí.

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Por outro lado, há o interesse (meu) quase patológico por biografias de escritores/pensadores. Outro dia, conversando com um amigo, falava um pouco de mal dessa corrente histórica que só quer compreender a realidade pela via da vida do sujeito, como se para compreender Napoleão fosse imprescindível entender como se comportavam Josephine e ele na cama. Não é isso que me interessa, a priori, nas biografias, ligar alhos e bugalhos. Conectar o pensamento à vida, entender um pela via da outra. No entanto, não posso negar que gosto pacas de biografias justamente porque elas acabam ajudando a "explicar o sujeito", se é que fui claro. E também porque me interessa, pensando naquilo que Marguerite Youcernar disse, entender que o homem de palavra é também um homem de ação. Que por detrás do que se pensou e escreveu há alguém viveu dramas, alegrias, paixões e redenções bem próximas de nós. Isso tira toda a aura do sujeito, aproxima-o da rês-do-chão. Ele fica tendo uma cara parecida com a nossa. Por isso, quando me deparei com a do Foucault, bem, foi meio que impossível resistir. 

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Michel Foucault é comumente descrito como louco - e o livro do Eribon procura explicar como isso acabou resultado no interesse do filósofo por temas como psiquiatria e clínica (taí a História da loucura que não nos deixa mentir), além de falar bastante no discurso do "louco" (o interdito) num texto tão pequeno quanto poderoso como é A ordem do discurso. Desde muito cedo, Foucault viveu nos limites da sanidade, sendo uma criança esquiva, um adolescente absorto desse plano (e agora me pergunto, qual?), um normalien confuso e agressivo e um adulto que trabalhou nas tensões da linguagem, com se ela não desse conta (e de fato não dá) de explicar o mundo visível - e fosse, por isso, necessário, enlouquecê-la para encontrar algum tipo de exegese possível e compreensível. O tema da folie esteve no centro das preocupações foucaltianas. E foi exatamente isso que me impactou na biografia: a necessidade que ele teve em penetrar, de uma forma insidiosamente perigosa, no nervo da loucura para, de lá, buscar algum tipo de compreensão (e de dignidade, se pensarmos nesses termos, veremos muito disso na História da loucura) para o que, por muito tempo, foi tabu para a nossa sociedade. E que, mesmo com todo esse papo de humanização do tratamento psiquiátrico tão em voga em nossos dias, continua sendo. Daí a atualidade (e mais, a necessidade) de Foucault.

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Eribon descreve, aqui e ali, a problemática relação de Foucault com a sua sexualidade. Relutante a vida inteira (do que foi acusado, algumas vezes com dureza) em assumir sua homossexualidade, ele a viveu nos "subsolos parisienses" (e em outros pelos quais transitou) e, no segredo (ao menos para o mundo) de seu apartamento da rue de Vaugirard, 8º andar, com Daniel Defert, sociólogo e seu companheiro até a morte. Aliás, Eribon é incisivo ao ligar, desde o início ao fim, a vida de Foucault ao fato de ser ele gay: desde suas crises na École Normale Supérieure, depois de noites de sexo e vergonha, até a morte prematura e dolorosa ocasionada pela Aids. O que, em suma, fez da sexualidade a sua preocupação número dois: em sua História da sexualidade, talvez numa espécie de exorcismo (ou catarse, se pensarmos no termo mais à Adorno que à Aristóteles), ele procurou apresentar, descrever e desmontar os tabus, as interdições (sempre elas) e as amarras que a sexualidade impingiu à sociedade ao longo dos tempos. 

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Há muito mais no livro, claríssimo: a relação de Foucault com as drogas  (Mathieu Lindon, num livro que acabou de sair no Brasil, O que amar quer dizer, conta que viajou muito no apartamento de Foucault, movido a LSD e Mahler), no que ficamos sabendo que o filósofo cultivava maconha num vasinho na varanda de casa, as querelas com o poder e academia, o ativismo político, as amizades e afinidades eletivas, a chegada ao Collége de France... Depois de ler essa biografia, enfim, o filósofo agora para mim é muito mais humano: contraditório, vívido, sofrido, louco. E, mais do que nunca, continua genial.



Perdão, Godard, mas aqui o plágio é inevitável: 

"Deux ou trois choses que je sais de lui". 




Do Jorge.



terça-feira, 12 de agosto de 2014

A volta (ou Às voltas), com Silviano Santiago






Olá,


A volta é das maiores certezas da existência, tenho que confirmar já. Estar, ir e voltar, talvez o périplo arquetípico da viagem - qualquer uma, inclusive na maionese. Pois eis que aqui estou, de volta. Muita coisa aconteceu de cá para lá, de cá onde estou para lá onde terminei-comecei essa parada de blog. Resumindo tudo, uso o verso de "O homem velho", do Caetano: "Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval". Traduzindo: nasceu a Valentina (minha filha, lume destes olhos meus), continuo sem fazer filme algum, disse muita coisa por aí afora e tive um livro selecionado para a publicação. Assome-se a esta receita o fato de que voltei ao PPGL-UFES, agora na condição de doutorando (chega, porque vou achar mesmo que Narciso acha feio o que não é espelho...). O fato é que fui vivendo-lendo-escrevendo. Pronto. Mas não ponto, dessa vez. Porque sigo, claro. E isso implica dizer que de vez em quando certas coisas voltam, o eterno retorno (ô, Nietzsche!). A volta, como disse no início. Por isso o blog, que é meu espaço de exercício desse voltar - e revejo que sempre preciso explicar porque volto, o inexplicável. Sim, seu Jorge, porque a resposta é sempre simples, é sempre esta: porque é preciso. Sobretudo porque é preciso escrever. Sobre o que der. Sobre o que vier. Agora sim ponto.


E hoje quero falar de um autor que aparece com frequência por aqui. Quer dizer, ele é já um velho amigo, desses queridos que ficam um tempo sumidos mas quando voltam, é uma alegria desmedida. É com essa alegria, pois, que espero pelos seus novos livros, com ela também que, quando a saudade aperta, parafraseando a canção, não me acanho com ele e volto a lhe procurar: Silviano Santiago. Seu romance novo, "Mil rosas roubadas", é a alegria da vez (que estou dividindo com a descoberta de Mia Couto - mas isso é prosa pra outro post, esperem). Romance talvez não dê conta, penso agora. O livro do Silviano é uma pretensa biografia de um ser de carne e osso e que aparece disfarçado de seu próprio nome do livro, no mais à clef roman à clef que já li em tempos. Explico-me: escondido sobre a máscara do nome Zeca, o livro retrata a amizade de Silviano com o letrista e produtor cultural Ezequiel Neves. Aliás, quem assistiu ao filme da Sandra Werneck sobre o Cazuza viu um Zeca porra-louca e, de algum modo, bastante caricaturado. Não é esse, no entanto, que resvala do romance de Silviano. É, por outro lado, um Zeca íntimo, de algum modo difuso, o amigo que fez com que Silviano, ao perdê-lo para o câncer em 2010, se sentisse uma espécie de viúvo. Daí a necessidade imperiosa de revivê-lo por outra luz, que não aquela que a mídia consagrou. Um Zeca profundo e, sobretudo, admirável. Aliás, a epígrafe do livro, retirada da obra do húngaro Sándor Márai, é bastante reveladora. Diz que sobreviver àquele que se ama é um crime não qualificado no código penal. Pode ser. O certo é que, fica patente por todo o romance, permanecer para além do ser querido é tão doloroso a ponto de fazer-nos querer também morrer. Ou por outro lado, como fez Silviano, escrever para fazer o outro vivo mais uma vez.


Quem busca um romance de referências à vida e seus fatos cotidianos, gostos e situações reais (aliás, como a sobeja maioria dos romances à clef) pode tirar seu burrico da sombra. O livro é, talvez, o menos referente do Silviano. Mas é, paradoxalmente, o mais confessional livro do autor mineiro. Ouso dizer que é seu coming out, mas não sentido tão incensado quanto desnecessário que se vê por aí. O que quero dizer (o que Silviano quer dizer, na verdade), é que amizade apaixonada entre o narrador (ele) e Zeca (o outro) que durou mais de cinquenta anos e que o livro dá conta, mesmo que difusamente, de percorrer é entendida, desde a primeira linha, como fundamental para a vida e a experiência de estar vivo do narrador. Daí, senhoras e senhores, a potência do livro. Entre idas e vindas dessa amizade (desse amor, sem que nunca, nunquinha os dois personagens tenham consumado qualquer via de fato), Zeca e o narrador se moldam e se enquadram na vida. Melhor, fazem com que a vida se enquadre a eles. Zeca mais, aí sim o seu lado iconoclasta aparece. O narrador menos, torna-se professor universitário e acomoda-se na vida acadêmica. Mas sua vida do espírito, essa sim nunca mais é a mesma desde os idos de 1952, numa praça belo-horizontina, quando os dois se conhecem e se tornam amigos, até 2010, quando a chama da vida de Zeca se apaga. E que Silviano, por obrigação e necessidade, reacende e faz questão de carregar e nos entregar.


Como texto do dia, claro, deixo um trecho do romance, pequena picada desta maravilha que é "Mil rosas roubadas" (e que, salvo engano, cita Cazuza uma única vez):



"Talvez tenha sido na esperança de um dia assumir a condição de cúmplice que tenha me exposto à sua visitação durante todas as vinte e quatro horas do dia do restante de minha vida. Que ele me visse e me analisasse dia e noite, dos pés à cabeça, e me julgasse com outros olhos - os de espectador que assiste ao filme da vida com a imaginação do corpo em estado de transe - nas sucessivas e atrevidas mudanças por que fui passando. Conhecendo como me conheceria em todos os minutos e horas da vida, poderia escrever minha biografia e dar a conhecer ao mundo que fôramos inicialmente apaixonados, depois amigos e, finalmente, cúmplices."

(Silviano Santiago, "Mil rosas roubadas", p. 224).



Do Jorge.