segunda-feira, 30 de maio de 2011

Graciliano Ramos, psicografado por Silviano Santiago


Olá!








Há muito desenvolvi uma paixão grande pela obra de Silviano Santiago, talvez o nosso mais plural escritor contemporâneo (e sempre o comparo a Mário de Andrade, que também enveredou por muitos gêneros, com igual maestria). Silviano, que foi professor das universidades do Novo Mexico, Rutgers, Toronto e New York, até aposentar-se pela UFF, escreve divinamente tanto teoria como ficção. Seus livros de teoria da literatura e da cultura são obrigatórios para quem desejar ler o pós-modernismo à luz da literatura brasileira e da cultura latino-americana, como é o caso de "Nas malhas da letra", "Vale quanto pesa" e "Uma literatura nos trópicos". Por sua vez, a ficção escrita por Santiago tem um valor inquestionável e um lugar seguro em nossa historiagrafia literária, constituída por romances como "Stella Manhattan" e "Heranças", livros de contos como "Keith Jarret no Blue Note" e "Histórias mal contadas", chegando aos poemas de "Crescendo durante a guerra numa província ultramarina" e "Cheiro forte". Silviano é um pensador brasileiro que escreve e também um escritor que pensa a nossa cultura e a reflete em seus textos ficcionais. Lembro que sua obra através do ensaio "Caetano enquanto superastro", essencial para a minha compreensão do homem e do artista Caetano Veloso, e, de lá para cá, devorei sua obra de fio a pavio. Com a avidez das paixões, diga-se.


E as paixões têm de ser revisitadas, sempre, para que não feneçam, concordam? O amor é mais perene e sobrevive sem essa devoção. Mas a paixão. A paixão precisa desse chafurdar-se, precisa que se mergulhe nela para que não fique mortiça. Na linha do que disse Hegel, sempre digo que a paixão se alimenta do fogo, caso contrário, torna-se cinzas. Por isso, volto sempre à Santiago. Vou até a estante e rapto um ou outro volume, leio um poema, um conto, um trecho de romance, um ensaio crítico, para me imbuir dele. É assim que mantenho acesa a chama.


E hoje peguei a esmo o romance "Em liberdade", cuja idéia de sua concepção por si só faria deste livro um marco da narrativa contemporânea. Trata-se de um diário fictício do escritor Graciliano Ramos e que teria sido escrito logo após sua soltura da cadeia em 1937, onde foi encerrado por ordem do Estado Novo de Getúlio Vargas. Todos sabem que Graciliano escreveu seu "Memórias do cárcere" baseado nessa experiência, na sua vivência no cárcere durante um ano inteiro. O que Silviano imagina é como seria o escritor escrevendo um dirário pós-cárcere. Eis o mote de "Em liberdade" - e que belo jogo de idéias opostas não é este, cárcere e liberdade. Como se não bastasse, o autor utiliza um recurso intertextual, hoje bastante batido, mas que nos idos de 1981, quando o livro foi publicado, era novidade entre nós: o pastiche. Trata-se do recurso narrativo de imitar, deliberadamente, o estilo de escrita de um outro autor, como uma espécie de "roubo consentido", ou melhor, de "plágio declarado" dessa estilística. A imitação no caso de "Em liberdade" é tão sofisticada e tão artisticamente urdida, que tem-se a impressão de estar lendo um texto do próprio Graciliano, e não de Silviano Santiago. A mesma secura da escrita, aliada a uma constante autorreflexão sobre o ato de escrever e de estar no mundo, tão características da ficção do autor alagoano está lá, como que pscicografada por este genial escritor que é Silviano. Um livro grandioso, portanto, pela idéia conceptiva e pela narrativa elegante e precisa.


Deste maravilhoso livro, que como uma benção - uma epifania - dessas que só podem salvar o dia de uma pessoa, me caiu hoje nas mãos, deixo aqui um trecho, como texto do dia. Trata-se de uma passagem em que o autor-personagem Graciliano Ramos contempla o mar em Ipanema, um dia depois de sair da prisão. O mar torna-se metáfora de sua condição, da sua possibilidade de rendenção após a dilacerante experiência da prisão. Ei-lo:





"O mar, que engolia barcos, saveiros, lanchas, navios, transatlânticos, era a minha tábua de salvação. O mar, que escondia os homens dos homens, que transformava seres semelhantes em estrangeiros, entregava-me a mim mesmo a mais fiel das minhas cópias. Uma cópia de que não teria vergonha e que não causaria piedade aos outros. O mar, que despertava o medo e a imaginação para o medo, povoado por seres reais e adamastores, era a minha coragem. Aprendia com o mar uma lição de vida, onde não entrava a abnegação, a modéstia, o pudor. Só a conquista. O mar é. Eu sou. Não há adjetivos. Apenas a afirmação magnífica da necessidade de existir, viver, deixar escorrer energia e força no presente, sem interferência do passado e sem compromisso com o futuro. O mar entregava-me de volta o meu corpo para que eu fizesse com ele o que era possível ser feito dentro de um único instante. Precisca usufrui-lo, trabalhá-lo, ajeitá-lo para que vivesse o instante com a glória de uma vida inteira". (p. 42)







Não é extraordinário? Tenho, sempre que releio este livro, a impressão de ouvir a voz inteiror do próprio Graciliano dizendo estas palavras. Palavras que, em Silviano Santiago, este escritor superlativo, encontraram mão perfeita que as captasse e fizesse chegar até nós.






Do Jorge.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Esta manhã


Olá!



Lido nesta manhã, numa página de Ferreira Gullar:


(...)
E penso, quantas manhãs virão ainda na história da Terra?


(IN: Perda. "Barulhos", 1987)



Pensei naquela manhã, não tão longínqua, mas para sempre vívida na memória, no início deste ano: a manhã em que vi, maravilhado, os Andes pela janela do avião. No fone, ouvia as Variações Golberg, de Bach, e pensei quando me seria concedido ver uma manhã como essa. Tentei escrever sobre ela e o sentimento se perdeu, tão cristalino que intocável na mente. E eis que hoje, uma outra manhã, aqui, em São Mateus, reencontro o sentimento, traduzido poeticamente por Gullar. E, como ele, me pergunto, quantas manhãs, ainda?




Do Jorge.

(P.S.: a foto é minha, momento visual daquela manhã perdida e hoje reencontrada).