terça-feira, 12 de agosto de 2014

A volta (ou Às voltas), com Silviano Santiago






Olá,


A volta é das maiores certezas da existência, tenho que confirmar já. Estar, ir e voltar, talvez o périplo arquetípico da viagem - qualquer uma, inclusive na maionese. Pois eis que aqui estou, de volta. Muita coisa aconteceu de cá para lá, de cá onde estou para lá onde terminei-comecei essa parada de blog. Resumindo tudo, uso o verso de "O homem velho", do Caetano: "Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval". Traduzindo: nasceu a Valentina (minha filha, lume destes olhos meus), continuo sem fazer filme algum, disse muita coisa por aí afora e tive um livro selecionado para a publicação. Assome-se a esta receita o fato de que voltei ao PPGL-UFES, agora na condição de doutorando (chega, porque vou achar mesmo que Narciso acha feio o que não é espelho...). O fato é que fui vivendo-lendo-escrevendo. Pronto. Mas não ponto, dessa vez. Porque sigo, claro. E isso implica dizer que de vez em quando certas coisas voltam, o eterno retorno (ô, Nietzsche!). A volta, como disse no início. Por isso o blog, que é meu espaço de exercício desse voltar - e revejo que sempre preciso explicar porque volto, o inexplicável. Sim, seu Jorge, porque a resposta é sempre simples, é sempre esta: porque é preciso. Sobretudo porque é preciso escrever. Sobre o que der. Sobre o que vier. Agora sim ponto.


E hoje quero falar de um autor que aparece com frequência por aqui. Quer dizer, ele é já um velho amigo, desses queridos que ficam um tempo sumidos mas quando voltam, é uma alegria desmedida. É com essa alegria, pois, que espero pelos seus novos livros, com ela também que, quando a saudade aperta, parafraseando a canção, não me acanho com ele e volto a lhe procurar: Silviano Santiago. Seu romance novo, "Mil rosas roubadas", é a alegria da vez (que estou dividindo com a descoberta de Mia Couto - mas isso é prosa pra outro post, esperem). Romance talvez não dê conta, penso agora. O livro do Silviano é uma pretensa biografia de um ser de carne e osso e que aparece disfarçado de seu próprio nome do livro, no mais à clef roman à clef que já li em tempos. Explico-me: escondido sobre a máscara do nome Zeca, o livro retrata a amizade de Silviano com o letrista e produtor cultural Ezequiel Neves. Aliás, quem assistiu ao filme da Sandra Werneck sobre o Cazuza viu um Zeca porra-louca e, de algum modo, bastante caricaturado. Não é esse, no entanto, que resvala do romance de Silviano. É, por outro lado, um Zeca íntimo, de algum modo difuso, o amigo que fez com que Silviano, ao perdê-lo para o câncer em 2010, se sentisse uma espécie de viúvo. Daí a necessidade imperiosa de revivê-lo por outra luz, que não aquela que a mídia consagrou. Um Zeca profundo e, sobretudo, admirável. Aliás, a epígrafe do livro, retirada da obra do húngaro Sándor Márai, é bastante reveladora. Diz que sobreviver àquele que se ama é um crime não qualificado no código penal. Pode ser. O certo é que, fica patente por todo o romance, permanecer para além do ser querido é tão doloroso a ponto de fazer-nos querer também morrer. Ou por outro lado, como fez Silviano, escrever para fazer o outro vivo mais uma vez.


Quem busca um romance de referências à vida e seus fatos cotidianos, gostos e situações reais (aliás, como a sobeja maioria dos romances à clef) pode tirar seu burrico da sombra. O livro é, talvez, o menos referente do Silviano. Mas é, paradoxalmente, o mais confessional livro do autor mineiro. Ouso dizer que é seu coming out, mas não sentido tão incensado quanto desnecessário que se vê por aí. O que quero dizer (o que Silviano quer dizer, na verdade), é que amizade apaixonada entre o narrador (ele) e Zeca (o outro) que durou mais de cinquenta anos e que o livro dá conta, mesmo que difusamente, de percorrer é entendida, desde a primeira linha, como fundamental para a vida e a experiência de estar vivo do narrador. Daí, senhoras e senhores, a potência do livro. Entre idas e vindas dessa amizade (desse amor, sem que nunca, nunquinha os dois personagens tenham consumado qualquer via de fato), Zeca e o narrador se moldam e se enquadram na vida. Melhor, fazem com que a vida se enquadre a eles. Zeca mais, aí sim o seu lado iconoclasta aparece. O narrador menos, torna-se professor universitário e acomoda-se na vida acadêmica. Mas sua vida do espírito, essa sim nunca mais é a mesma desde os idos de 1952, numa praça belo-horizontina, quando os dois se conhecem e se tornam amigos, até 2010, quando a chama da vida de Zeca se apaga. E que Silviano, por obrigação e necessidade, reacende e faz questão de carregar e nos entregar.


Como texto do dia, claro, deixo um trecho do romance, pequena picada desta maravilha que é "Mil rosas roubadas" (e que, salvo engano, cita Cazuza uma única vez):



"Talvez tenha sido na esperança de um dia assumir a condição de cúmplice que tenha me exposto à sua visitação durante todas as vinte e quatro horas do dia do restante de minha vida. Que ele me visse e me analisasse dia e noite, dos pés à cabeça, e me julgasse com outros olhos - os de espectador que assiste ao filme da vida com a imaginação do corpo em estado de transe - nas sucessivas e atrevidas mudanças por que fui passando. Conhecendo como me conheceria em todos os minutos e horas da vida, poderia escrever minha biografia e dar a conhecer ao mundo que fôramos inicialmente apaixonados, depois amigos e, finalmente, cúmplices."

(Silviano Santiago, "Mil rosas roubadas", p. 224).



Do Jorge.

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