quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O poema perdido



Olá!



Perdi um poema. Não um dos que habitam os muitos livros da minha biblioteca ou de qualquer outra. Não um daqueles que, uma vez ouvidos de relance numa récita, guardei indelével na caixa da memória. Perdi um poema meu. Um poema que ainda não nascera, nem sei agora se um dia nascerá. Dele ficou apenas um verso, "a pedra e seu / ancestral chamariz de mineral". Hoje acordei com ele, ecoando. Animei-me durante a manhã, expectante, é como sempre faço quando um poema quer nascer. Ele vai-se construindo, verso a verso, em mim, até que quando me sento diante do computador, erijo o poema inteiro. E é uma alegria como poucas a que experimento nessas horas, algo perto do amor, algo perto do êxtase de Santa Teresa d'Ávila, algo perto da cristalina nota de uma trombeta angelical. Mas não foi assim, hoje. Hoje, deu-se o aborto do poema. Perdeu-se, como perde-se uma parede construída com tijolos mínimos e ainda não inteiramente fortes. O poema diluiu-se em mim, dissolveu-se entre as minhas entranhas, não quis mostrar-se. E é um desespero como poucos o que experimento nessas horas, algo perto da treva da noite, como a pungente dor ou como o som de um trise lamento. Perder um poema é como perder-se num imenso labirinto, perdida também a saída e a possibilidade de escapar. O poema emparedou-me. Estou triste como a morte.

E o consolo, se consolo há, reside na poesia, paradoxalmente. Na poesia alheia, aquela que, pela via contrária do meu poema, rompeu as barreiras e veio dar-se à luz. Por isso, hoje posto um poema-consolo, para mim, talvez para aqueles que, como eu, perderam também um poema. E é Drummond quem, do alto de sua simplicidade poética, quem consola, explicando que, ao contrário do que pensamos, é com as palavras que se escreve o poema. Não forces teu sentimentos para tentar, em vão, traduzi-los no verso, diz o poeta. Eles nascerão das palavras. Das palavras virão e abarcarão tudo, até teus sentimentos. Até a tristeza e a dor de perder, como a um filho, um poema.



PROCURA DA POESIA


Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não

contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à

efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro

são indiferentes.

Nem me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.




Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo

das casas.

Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas

junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza

nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

A poesia (não tires poesia das coisas)

elide sujeito e objeto.




Não dramatizes, não invoques,

não indagues. Não percas tempo em mentir.

Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família

desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.



Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.



Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.



Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?



Repara:

ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


(Carlos Drummond de Andrade)




Do Jorge.


4 comentários:

Jorge Verly disse...

Olá!


Perdi um poema. Não um dos que habitam os muitos livros da minha biblioteca ou de qualquer outra. Não um daqueles que, uma vez ouvidos de relance numa récita, guardei indelével na caixa da memória. Perdi um poema meu. Um poema que ainda não nascera, nem sei agora se um dia nascerá. Dele ficou apenas um verso, "a pedra e seu / ancestral chamariz de mineral". Hoje acordei com ele, ecoando. Animei-me durante a manhã, expectante, é como sempre faço quando um poema quer nascer. Ele vai-se construindo, verso a verso, em mim, até que quando me sento diante do computador, erijo o poema inteiro. E é uma alegria como poucas a que experimento nessas horas, algo perto do amor, algo perto do êxtase de Santa Teresa d'Ávila, algo perto da cristalina nota de uma trombeta angelical. Mas não foi assim, hoje. Hoje, deu-se o aborto do poema. Perdeu-se, como perde-se uma parede construída com tijolos mínimos e ainda não inteiramente fortes. O poema diluiu-se em mim, dissolveu-se entre as minhas entranhas, não quis mostrar-se. E é um desespero como poucos o que experimento nessas horas, algo perto da treva da noite, como a pungente dor ou como o som de um trise lamento. Perder um poema é como perder-se num imenso labirinto, perdida também a saída e a possibilidade de escapar. O poema emparedou-me. Estou triste como a morte.

E o consolo, se consolo há, reside na poesia, paradoxalmente. Na poesia alheia, aquela que, pela via contrária do meu poema, rompeu as barreiras e veio dar-se à luz. Por isso, hoje posto um poema-consolo, para mim, talvez para aqueles que, como eu, perderam também um poema. E é Drummond quem, do alto de sua simplicidade poética, quem consola, explicando que, ao contrário do que pensamos, é com as palavras que se escreve o poema. Não forces teu sentimentos para tentar, em vão, traduzi-los no verso, diz o poeta. Eles nascerão das palavras. Das palavras virão e abarcarão tudo, até teus sentimentos. Até a tristeza e a dor de perder, como a um filho, um poema.

Kátia Franklin disse...

Chorei.
Sensibilidade traduzida à concretude das palavras. Perder-se num poema. O poema perder-se em você. Lindo. Lindo e triste. Poesia pura. Prosa poética. Mas quase não é a mesma coisa. Ou o é. Aprendo sempre com o Mestre. Agradeço sempre a generosidade.

Jorge Verly disse...

Kátia,

Bom vê-la por aqui e
obrigado pelo carinho.
De mestre para mestre, rs.
Então, perdi o poema
mas ganhei esta emoção, a emoção
de perdê-lo e sentir
tudo isso que escrevi.

Beijo,

Do Jorge.

Mary Helen disse...

Lógico que eu leio o que você escreve. E me orgulho muito do que escreve. Porque é extremamente original, inteligente e sensível. Obrigada meu Deus por viver todos os dias com tão maravilhosa pessoa.
Ai, me deu um frio na barriga escrever aqui.RSRSRS.