quinta-feira, 8 de julho de 2010

A viagem do elefante


Olá!



Sempre usei este blog para falar, basicamente, da minha experiência de leitor - e descubro, olhando lá no início, quando comecei a narrar minha "experiência de vivente" através desse hiper-espaço, quando pensava em escrever sobre tudo o que fosse importante para mim, descubro que não há nada que experencio com mais intensidade do que a literatura e a leitura. Trato os livros como amigos, já que convivo com eles por algum tempo - e, com alguns, por toda a vida - e gosto de contar como eles incidem sobre mim, do mesmo modo como gostamos de falar dos amigos e de sua influência sobre nós. É o diário de um leitor, portanto.

E, como tal, hoje falo desse maravilhoso texto que, por um acaso, me caiu às mãos. Quando o Saramago morreu, no último 18 de junho, fui à estante à cata de seus livros, peguei com especial ternura meu exemplar de "A jangada de pedra" e imediatamente me lembrei de sua leitura (longa, já que demorei quase um mês e meio para atravessá-lo) fascinante, hipnótica, deslumbrante. Peguei também "O evangelho segundo Jesus Cristo", pensando em como ele abalou minha estrutura judaico-cristã à época da leitura (e lá se vão quase dez anos). Procurei me reencontrar com Saramago naquela noite, quando de sua morte. Dois dias depois, ao fazer compras com Mary, deparei-me com um exemplar de "A viagem do elefante", penúltimo livro do autor português, publicado em 2008, na banca de revistas do supermercado. Claro que não resisti e o comprei, mais como uma espécie de última reverência ao finado autor. Não foi, pois, uma leitura planejada, desejada. Lembro de ter lido uma resenha na Folha quando do lançamento do livro e só. Não foi um livro que logo quis ler. Deixei-o de lado. Pois ele veio até mim.

E que texto! A história do romance (Saramago escreve "conto" abaixo do título) é bastante simples. Em 1551, o rei português D. João III decide dar de presente a seu cunhado, o arquiduque Maximiliano da Áustria, um elefante de presente de casamento, um elefante que a Corte Portuguesa tinha adquirido anos antes como uma espécie de mimo à suas majestades, mas que agora tinha pouca ou nenhuma serventia. Partindo desse fato, real, José Saramago reconta viagem de Salomão (o elefante), de Lisboa até Viena, sob os cuidados do cornaca Subhro, seu fiel tratador. Com engenho e arte (perdão pelo clichê), as peripécias da caravana, que metade do caminho é portuguesa, metade é austríaca, são narradas, sempre com a pena fina da ironia e do humor, caminhos que Saramago conhecia bem. Salomão, mais que um simples elefante, torna-se a razão e a causa de vida daquelas pessoas, ao menos ao longo da travessia de meia Europa. Uma Europa a um só tempo pós-feudal e pré-moderna, que vai se desvelando em seus jogos de poder e de interesse, catalisados pela figura do magnífico paquiderme que é Salomão. Um livro raro.

Como texto do dia, claro, posto um trecho do romance. Um detalhe importante: Saramago optou por escrever todos os nomes próprios, de personagens e lugares, com letra minúscula, talvez numa tentativa de igualar a todos através da linguagem. Por isso, a citação vai como está no romance:


"Diz-se, depois de que primeiro o tivesse dito tolstoi, que as famílias felizes não tem história. Também os elefantes felizes não parece que a tenham. Vejam-se, por exemplo, o caso de salomão. Durante duas semanas que esteve em bressanone, descansou, dormiu, comeu e bebeu à tripa-forra, até chegar com o dedo, algo assim como umas quatro toneladas de forragem e uns três mil livros de água, com o que pode compensar as numerosas dietas forçadas a que havia sido obrigado a submeter-se durante a longa viagem por terras de portugal, espanha e itália, quando nem sempre foi possível reabastecer-lhe com regularidade e despensa."

(p. 233)



Beleza, não? Leiam, pois, leiam esta maravilhosa jóia que é "A viagem do elefante". É Saramago em sua melhor forma.



Do Jorge.

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