domingo, 24 de outubro de 2010

O informe de Borges


Olá!



Ando bastante sumido, é verdade. Não é preguiça de escrever, posso assegurar. Também não são os afazeres, que esses sempre existem. Talvez seja uma conjunção dessas duas coisas. A verdade é que nesses dias, não tive vontade de registrar nada. Tédio? Ao contrário, prefiro pensar que me acometeu o mesmo que ao grande Campos de Carvalho, que escreveu quatro magníficos romances nos anos 50 e que, depois, simplesmente parou de escrever. A um repórter que lhe fez essa pergunta em 1997, às vésperas de sua morte, disse apenas que "estava feliz demais para escrever".

Mas hoje volto a esse espaço, onde dialogo comigo mesmo e com os poucos que leem esse blog - e sei realmente que não são muitos. Como disse certa vez, aqui traço mais um roteiro da minha vida de leitor do que da minha vida de verdade. Talvez se o fizesse, esse blog teria mais leitores. É como disse Mário de Andrade (com quem muito me identifico), "a vida alheia, sereia!". No entanto, me escondo. Prefiro mostrar outra face, também íntima, também minha, mas não tão interessante, a do Jorge Luis Verly Barbosa leitor.

E hoje, esse leitor escreve sobre outro Jorge, também Luis, Jorge Luis Borges, o genial autor argentino, que está na galeira dos meus autores de cabeceira. Outro dia, estava com meu exemplar de "Ficções" na mão e uma aluna disse, "Professor, foi o senhor que escreveu este livro?". Embevecido, só disse "Não, quem me dera. Eu apenas sou leitor, querida". Depois, pensei que também poderia dizer, "Sim, fui eu". Ora, segundo Roland Barthes, ler não é também escrever?

Esse fim de semana, resolvi reler alguns contos de Borges, esparçamente. Não houve sobre a face da Terra contista mais extraordinário e preciso como ele. Quem negará que textos como "O Aleph", "A intrusa", "O jardim das veredas que se bifurcam", "A biblioteca de Babel" e "A velha senhora" não são obras-primas? Os contos de Borges contém, a um só tempo, erudição, mistério, o mágico e a simplicidade. Como os textos policiais (e muitos textos dele têm essa temática), o final revela sempre uma enorme simplicidade, como se disséssemos, "oh, era exatamente assim que deveria terminar". Sempre imaginei Borges ditando aqueles textos, muitos à sua mãe, Leonor, já que ele ficou cego por volta dos cinquenta anos, sentando numa poltrona de sua vasta biblioteca, puxando de sua prodigiosa memória de leitor as referências aos clássicos, que permeiam seus textos.

Um dos textos relidos foi "O informe de Brodie", que dá título a uma das últimas coletâneas de contos publicados por Borges antes da morte, em 1986. O livro tem como temática a idéia do duelo, seja entre dois homens marcados pela desorna, como em "A história de Rosendo Juárez", seja entre duas mulheres artistas, marcadas pela inveja, como "O outro duelo", seja entre a lógica e ignorância, como em "O evangelho segundo São Marcos". Em "O informe de Brodie", conto que encerra o livro, temos também presente a temática de idéias que se opõem, neste caso, a civilização e a barbárie. O texto narra a história de um manuscrito, datado do século XIX, redigido por um certo missionário escocês, David Brodie, que narra os hábitos de uma fantática tribo sul-americana, os Yahoos. Com severidade, asco, curiosidade, complacência, ele vai desfiando hábitos bárbaros deste povo, como o fato de não possuírem memória, escrita, de sua linguagem ser apenas consonantal, de culturem um deus chamado Esterco e de terem um rei cego, maneta, mas que tem o poder absoluto. Ele os considera absolutamente diferentes de si, homem inglês, civilizado e ocidental. No entanto, lá pelo fim do conto, luminosamente, Brodie descobre um ponto de contato. O duelo, enfim, dá lugar à igualdade. Diz o narrador:


"Outro costume da tribo são os poetas. Acontece de um homem ordenar seis ou sete palavras, em geral enigmáticas. Não pode se conter e as diz aos gritos, de pé, no centro de um círculo que os feiticeiros e a plebe formam, estendidos na terra. Se o poema não os excita, não acontece nada; se as palavras do poeta os assustam, todos se afastam dele, em silêncio., sob o domínio de um horror sagrado (under a holy dread). Sentem que foi tocado pelo espírito; ninguém falará com ele nem olhará para ele, nem sequer sua mãe. Já não é um homem, mas um deus e qualquer um pode matá-lo O poeta, se puder, buscará refúgio nos areais do norte" (p. 92)


E não é isso que nos enlaça, a poesia? É esse o informe de Borges, a despeito de toda a sua genialidade, a nos dizer que os homens são tocados pelas palavras, por sua magia, por seu encanto e por seu horror. É mensagem que narrador, Brodie, nos envia, a de que as palavras, acima de qualquer outra coisa, servem para unir os homens, como ele percebe ao fim de sua narrativa. Como aquela tribo selvagem percebeu, por seu poetas. Como Borges, cego em sua biblioteca percebeu, em seus textos. Como eu, também tocado de beleza, nesta tarde de domingo, percebi, relendo Borges.



Do Jorge.

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