domingo, 7 de novembro de 2010

Glenn Gould




Olá!




O pianista canadense Glenn Gould figura facilmente em qualquer lista dos grandes músicos do século XX. Por vários motivos: seja por seu pianismo superlativo (todos sabem que as gravações de Gould da obra de Bach são definitivas), seja por suas teorias interpretativas (é genial a sua tese sobre a forma ideal de interpretar Mozart), seja pelo uso revolucionário da mídia (Gould escreveu e dirigiu programas de rádio nos anos 60 e 70 a partir de colagens e montagens musicais e que hoje qualquer jovem do planeta imita, via youtube e outras mídias de som e vídeo).


Mas a vida de Glenn foi um espetáculo à parte. Certamente, ele foi uma das pessoas mais excêntricas que já povoaram a face da Terra. Maníaco por pílulas, Gould tinha horror de ficar doente e tomava mais de 30 comprimidos por dia. Mesmo no verão, usava grossas luvas de lá, cachecol, sobretudos, casacos e chapéu. Dizia temer um resfriado ou mesmo uma pneumonia. Vê-lo tocar era um outro espetáculo. Gould usava sempre a mesma cadeira, de apenas 20cm de altura, o que o deixava bem abaixo do teclado. E, após começar a tocar, se desfazia em caras e bocas: virava os olhos, se despenteava, suava baldes, levantava os braços. Era uma coisa. E cantava! Os engenheros de som da Sony Classics (sua gravadora por toda a vida) enlouqueciam tentando (em vão) retirar do áudio das gravações aquela voz desafinada acompanhando a melodia (e que pode ser ouvida em praticamente todas as suas gravações). Gould também amava telefones. Morto em 1982, ele não pôde presenciar a popularização da internet e dos programas de trocas de mensagens instantâneas, como o msn, por exemplo. Seria um achado para ele, que, embora recluso, adorava manter longas conversas pelo telefone com os amigos, para quem ligava às vezes às 3 horas da manhã para dizer que tinha escutado uma extraordinária ária de Wagner e, pasmem, insistua em cantá-la ao interlocutor, por dez, vinte, cinquenta minutos! Outras vezes, ligava para dizer que tinha medido a pressão às 9h34 e ela estava 13/10 e que, depois, às 9h35, a mesma já media 12/11, e que, às 9h36, ela marcava 14/13. Há sujeito mais idiossincrático?


Goud, como sabem, não se apresentava em público. Ele considerava que estar no palco era a mesma coisa que estar numa arena de leões, com uma platéia ávida por morte e sangue. Seu último concerto foi em 1964, em Los Angeles. Conta-se que, antes de pisar no palco, o faxineiro do teatro o puxou pelo braço e pediu que ele autografasse um disco que trazia nas mãos e que pertencia a sua esposa, fã do pianista. Glenn pegou a caneta, rabiscou algo na capa do lp e caminhou em direção ao palco, onde tocou "A arte da fuga", de Bach. O faxineiro, maravilhado, lembrou-se de ler o texto. Dizia: "Glenn Gould, em seu último concerto, 10 de abril de 1964." Depois disso, ele nunca mais tocou para platéias, embora empresários do mundo inteiro lhe oferecessem verdadeiras fortunas para fazê-lo. No entanto, ele mergulhou nas gravações. Gravou quase duas centenas de discos, num repertório que cobriu Berg, Prokofiev, Mozart, Hindemmit, Schoenberg, Byrd, Beethoven... E principalmente Bach. Glenn foi o grande especialista no compositor alemão, de quem gravou a obra praticamente completa. Basta dizer que a primeira gravação profissional de Gould, em 1955, foi das Variações Goldberg. Os técnicos do estúdio da Sony-CBS em Nova York riram-se por dentro diante da audácia daquele jovem de 23 em interpretar aquela pedra de toque do repertório pianístico, que poucos tinham coragem de enfrentar. Mas tiveram que engolir o riso e também conter as lágrimas diante do que viram. O jovem desengonçado e performático tocou como Deus tocaria de fosse pianista. Sua gravação foi um estrondo e lançou o nome de Gould para sempre na história da música. E qual não foi a surpresa quando, em 1981, meses antes de morrer, ele resolveu gravar novamente as mesmas Variações Goldberg! Uma interpretação diferente, mais madura, tecnicamente perfeita como a primeira. Outro enorme sucesso.


Gould morreu precocente, em 1982, aos cinquenta anos. Sofreu um derrame. Seu funeral teve que ser realizado na Catedral de St. Paul, a maior de Toronto (e do Canadá), tamanha a quantidade de fãs e amigos que desejavam despedir-se do pianista. Quando o padre anglicano concluiu a missa, puseram para tocar a ária das Variações Goldberg, que todos ouviram num silêncio mortal. De repente, uma voz se elevou sobre a música e começou a cantar a ária junto ao pianista. Logo, todos perceberam que era a prória voz de Gould, acompanhando-se, como sempre fazia. A catedral veio abaixo num estrondoso aplauso.


Glenn Gould foi também considerado um exemplo da genialidade criativa humana até pelos círculos do poder. Digo isso porque, em 1977, o governo americano resolveu enviar duas sondas que deveriam viajar para além do sistema solar, levando provas a supostos seres de outros sistemas e galáxias, de que, neste planetinha chamado Terra, havia seres pensantes: as Voyagers I e II. Confeccionou-se um disco de cobre, junto a um toca-discos e desenhos instrutivos de como tocá-lo. No disco, havia, entre outros sons, uma saudação do presidente Jimmy Carter, saudações em diversas línguas, Louis Armstrong cantando "Melancoly Blues", sons de baleias, carros e cães. E havia Glenn Gould, tocando um prelúdio de "O cravo bem temperado", de Bach. Calcula-se que a sonda saiu do sistema solar em 1990. E que ainda hoje viage pelo espaço, à procura de vida inteligente fora da Terra, para mostrar a esses que em nosso planeta há também vida inteligente. Que há arte. E que, um dia, houve um gênio chamado Glenn Gould.






Do Jorge.

Nenhum comentário: