terça-feira, 12 de julho de 2011

O historiador




Olá!












São já mais de três anos mantendo esse blog, um blog em que vivo num jogo de esconde-aparece, certo, mas que demarca a minha experiência de ser-e-estar no mundo, para usar um já lugar-comum. Aqui traço um mapa afetivo da minha vida, pontuada quase sempre pelo signo da poesia - não é à toa que ele se chama "A poesia é para comer". Mas a proposta é também falar sobre outras coisas. E eventualmente falo de romances, de cinema, de música. O que noto agora é que, nesses anos, nunca falei de História. O que, reconheço agora, é uma lacuna grande, já que há doze anos me dedico profissionalmente a esse ofício, ao ensino de História. Seja na universidade (cujas experiências, confesso, nunca atingiram minhas expectativas), seja na escola pública, que é onde me realizo mais. Aliás, essa coisa de ser professor de escola pública, de carreia mesmo (sou efetivo em dois cargos no estado), era e é uma coisa que muita gente não entende. Já cansei de ouvir aquela frase "Jorge, com a sua bagagem, com mestrado e tal, por que não está ensinando na universidade?". A esses, respondo sempre "Porque não quero". É no chão da escola, no dia-a-dia do ensino público brasileiro que me realizo. E é lá que ensino História. Com o maior orgulho e com a maior responsabilidade. Para mim, é o mesmo que estar na USP ou mesmo na Sorbonne. Levo aos meus alunos as mesmas experiências de leitura que levaria para lá. Falo de Jacques Le Goff, de Carlo Ginzburg, de Georges Duby, de Eric Hobsbawn, de Michelet. Levo textos destes e de outros, textos palatáveis, menos áridos, mas que procurem apresentar um pouco do pensamento dessa gente para os "meus meninos". Porque tenho a plena consciência de que estou realizando ali um trabalho intelectual, de construção mesmo no conhecimento. Daí brindá-los com os melhores.




A História está na minha vida desde sempre. Era, ao lado da Literatura Brasileira, a minha matéria preferida no colégio. Amava a História talvez porque, assim como texto literário, tratava-se de um discurso, uma narrativa. Ao visualizar as pinturas da Sítio Arqueológico da Pedra Furada, no Piauí, nos livros, imaginava se o cotidiao daquelas pessoas era como o meu, ora tedioso, ora maravilhoso. Ao ouvir sobre a invasão de Cambises ao Egito em 525 a.C., tratava logo de reconstruir na minha cabeça aquele cenário, o Nilo e sua grandeza curvando-se diante daquele aventureiro persa. A Idade Média, que para os meus colegas era simplesmente intolerável, para mim era cenário de aventuras de cavalaria e de grandes histórias de amor cortês. Tudo isso sempre me encantou ao ponto de, ao prestar vestibular, não ter a menor dúvida em optar pelo curso de História. E me tornar professor foi um caminho natural, porque desejava trasmitir, assim como a mim foi transmitida, aquela paixão e aquele apego ao passado e a seu potencial de, sim, resposta, mas também de pura beleza.




Por isso, pensando num texto para hoje, a escolha inevitável foi o poema "O historiador", do Drummond. É curioso ver um poeta descrevendo o ofício, que para muitos é vetusto e sem graça, de recolher e refazer o passado. Remexer, sacudir a poesia do tempo sobre as coisas para que elas brilhem outra vez e nos expliquem o que foi o passado. E Drummond capta bem esse espírito do nosso trabalho e também daquilo que falei acima, do outro lado da História, do seu potencial de, entre batalhas, conquistas, acordos e crises, mostrar também o poético da vida. Ora, e não é desse mesmo material que ela é feita?









O HISTORIADOR





Veio para ressucitar o tempo

e escalpelar os mortos,

as condecorações, as liturgias, as espadas,

o espectro das fazendas submergidas,

o muro de pedra entre os membros da família,

o ardido queixume das solteironas,

os negócios de trapaça, as ilusões jamais confirmadas

nem desfeitas.

Veio para contar

o que não faz jus ser glorificado

e se deposita, grânulo,

no poço vazio da memória.

É importuno,

sabe-se importuno e insiste,

rancorso, fiel.



(Carlos Drummond de Andrade)




Do Jorge.

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