sábado, 30 de julho de 2011

A branca lucidez


Olá!

José Saramago se foi há já mais de um ano e sua ausência é tão sentida ainda, penso que a será sempre. Pego-me imaginando que livro maravilhoso seria o "Alabardas, alabardas! Espingardas, espingardas!", que ele estava escrevendo quando morreu. Ou então o livro que se sucederia a este, e o outro, e o outro, e o outro, infinitamente. Mas ele se foi, é fato, então resta-nos apenas imaginar. Imaginar e sentir saudade, essa palavra tão portuguesa como o próprio Saramago, como todos nós, lusófonos e irmãos pela língua. No entanto, há consolo na leitura de seus livros que ficaram, aqueles que já lemos e que podemos sempre reler e aqueles que ainda não lemos e cuja leitura, de tão iluminada, dá-nos a impressão de que Saramago, ainda vivo, acabara de escrevê-lo.

Como este "Ensaio sobre a lucidez", que acabo agora de fechar, embevecido. Talvez a obra mais conhecida do autor português seja mesmo "Ensaio sobre a cegueira", um livro monumental que ficou popular quando transposto para a tela de cinema, num comovente filme dirigido pelo brasileiro Fernando Meireles em 2007. Nele, acompanhamos a insólita história de um país assolado por uma misteriosa epidemia de cegueira, uma cegueira branca, já que o que os desolados habitantes "vêem" diante de si é apenas uma superfície leitosa e alva. E, aos poucos, todos são tomados por ela, todos menos um, a mulher do médico, como assim é denominada no romance, por se tratar da esposa do primeiro oftalmologista a tratar do primeiro cego do país. É ela quem guia um pequeno grupo, formado por seu marido, um casal, uma prostituta, um velho caolho e um menino estrábico, em meio ao caos que se instala após todos perderem a visão.

E eis que estes personagens voltam à cena neste "Ensaio sobre a lucidez", uma espécie de continuação (se é que a palavra cabe aqui) do primeiro livro. Novamente, estamos na cidade sem nome, capital do mesmo país imaginário onde se dão os fatos de quatro anos antes, conforme está no livro, quando todos cegaram. Desta vez, durante a realização de eleições municipais, ocorre outro fato insólito: após a apuração dos votos, o número de votos brancos ultrapassa 80%. Os políticos do partido da direita, no poder, desorientados, temem pelo futuro da "democracia", já que os cidadãos deveriam optar por um dos partidos constituídos. A mídia, manipulada por este mesmo partido, lança a ideia de que a capital está sendo tomada de assalto por um movimento subversivo de proporções jamais vistas na história da humanidade, capaz de contaminar mais de 80% da população. A narrativa acompanha, em sua primeira parte, as tentativas frustradas do governo de pôr a população de volta nos eixos, o que não ocorre. Todos mantêm-se firmes no propósito de desafiar as autoridades e o governo com seu protesto branco. E Saramago, mestre absoluto da ironia, como o nosso Machado de Assis também o foi, é brilhante ao descrever os sórdidos diálogos que se dão na cúpula do poder no país, já que verdadeiras vilezas saem da boca do primeiro-ministro, do presidente da república, do ministro do interior e do ministro da defesa, em sua vã tentativa de sufocar o "movimento dos brancosos", como são chamados os cidadãos que votaram em branco.

E na segunda parte do livro, ressurgem então os personagens de "Ensaio sobre a cegueira". Sim, pois, depois de uma sutil sugestão do ministro da cultura, que acaba por aderir aos brancosos, acaba-se por fazer uma óbvia relação entre a cegueira branca de quatro anos atrás com o voto branco de agora. E a mulher do médico, a única a enxergar em meio ao mar de cegos de antes, agora é apontada como a causadora dessa nova epidemia. Uma epidemia de lucidez, nas palavras do ministro da justiça, outro dissidente. E é a "caça" a essa mulher, empreendia por um comissário de polícia - personagem magistral e que passa por uma metamorfose de consciência ao longo do livro -, um inspetor e um agente que passam a movimentar o romance, do meio até o seu, não podemos deixar de dizê-lo, melancólico final.

O que não nos deixa de levar à reflexão, como gostaria que fosse, penso, José Saramago. Ao discutir a fragilidade, ou melhor, a falácia que é aquilo que hoje chamamos de democracia, o escritor leva-nos a pensar até que ponto é válida a ideia de que somos governados pelo que decide a maioria. Melhor dizendo, são mesmo as autoridades respeitadoras da vontade popular? E a mídia, é fiel ao espírito filosófico de liberdade, ao não passa de um joguete nas mãos daqueles que estão no poder? Onde está a lucidez, afinal, com os brancos ou com os que são obrigados a escolher um dos partidos? Muitas questões são postas na mesa e continuam a ecoar em nós depois de concluída a leitura de "Ensaio sobre a lucidez". Livro que, escrito no mais fiel tom parabólico e irônico de Saramago nos põe a pensar um bocado sobre a vida e seus dilemas, sobre a sociedade e seus labirintos, sobre a política e suas máscaras. É, sobretudo, um livro, para usar uma expressão de Pilar del Río, a fiel companheira do escritor, que respeita profundamente a inteligência do leitor. Ao menos, me senti assim.

Deixo aqui um trecho dele, para vosso deleite (e desejando, sinceramente, que fisgue a todos e os leve diretamente à sua leitura integral). Ei-lo:

"Como os demais presidentes de mesa na cidade, este da assembleia eleitoral número catorze tinha clara consciência de que estava a viver um momento histórico único. Quando, já a noite ia muito avançada, depois de o ministério do interior ter prorrogado por duas horas o tempo da votação, período a que foi preciso acrescentar mais meia hora para que os eleitores que se apinhavam dentro do edifício pudesse exercer o seu direito de voto, quando por fim os membros da mesa e os delegados dos partidos, extenuados e famintos, se encontraram diante da montanha de boletins que haviam sido despejados das duas urnas, a segunda requisitada de urgência ao ministério, a grandiosidade da tarefa que tinham diante fê-los estremecer de uma emoção a que não exitaremos em chamar épica, ou heroica, como se os manes da pátria redivivos, se tivessem magicamente materializados naqueles papéis. Um desses papéis era mulher do presidente. Veio trazida por um impulso que a obrigou a sair do cinema, passou horas numa fila que avançava com lentidão, de caracol, e quando finalmente se encontrou em frente do marido, quando o ouviu pronunciar o seu nome, sentiu no coração algo que talvez fosse ainda a sombra de uma felicidade antiga, nada mais que a sombra, mas, mesmo assim pensou que só por isso tinha valido a pena vir aqui. Passava da meia-noite quando o escrutínio terminou. Os votos válidos não chegavam a vinte e cinto por cento, distribuídos pelo partido da direita, treze por cento, pelo partido do meio, nove porcento, e pelo partido da esquerda, dois e meio porcento. Pouquíssimos os votos nulos, pouquíssimas as abstenções. Todos os outros, mais de setenta por cento da totalidade, estavam em branco".

(p. 23-24).

Do Jorge.

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