quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Tema e variações



Olá,



Sou um pianista frustrado. Um dia projetei um carreira linda, recitais e gravações, masterclasses e coisa e tal. Tudo foi de roldão no tempo. Sem neuroses, claro (e me contradigo quando digo que sou um pianista frustrado, os paradoxos). Elaborando melhor o passado: sou um pianista frustrado, mas resolvido. Melhor, não?


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Minha estupidez pianística parou em Bach, preciso dizer. Bach sempre foi uma pedreira para mim (e para onze em cada dez pianistas frustrados, resolvidos ou não). E para mim, vencer Bach era tornar-se, de fato, pianista. Parei nele (e, elaborando agora o passado [Adorno], quem sabe não tenha sido por isso que enterrei no quintal o desejo de ser concertista e fui me meter com a dupla Letras-História?) e, bom, contentei-me em ser apenas ouvinte. Claro, de vez em quando batuco no piano coisas que mal ou bem ficaram de Bach em mim, as Invenções a duas ou três vozes, alguns dos Prelúdios do Cravo Bem Temperado, ou mesmo pecinhas fáceis, como a deliciosa Musette. Mas, ai de mim, toco mal pra burro. Decididamente, foi muito bom para os ouvidos alheios que eu me tornasse esse pianista frustrado-resolvido que sou.





Thomas Bernhard foi um escritor que descobri pela música, por uma porta difusamente aberta quando pesquisava, nos idos de 2004 (sei a data porque está grifada na contra-capa de O náufrago, de que falo já já), a respeito das duas gravações das Variações Goldberg, de Bach, feitas por Glenn Gould. 


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Glenn Gould. Há um outro texto sobre ele aqui no blog. Na hagiografia dos pianistas, Gould é para mim um dos membros da santíssima e imaculadíssima trindade: Gould, Martha Argerich e Nelson Freire, nesta ordem. Há outros santinhos que curto, mas esses três, deuses. E Gould, por uma minúscula diferença, está na frente (talvez o mindinho dois milímetros maior que o do Argerich, fazendo seu contraponto bachiano soar mais claro que o da argentina). Ouvi, ouço e ouvirei Glenn Gould a vida inteira. E seu Bach, todo mundo está cabeludo de saber, é divino, clio, erato, euterpe... é mesmo não-deste-mundo. Mas mesmo entre o Bach perfeito de Gould, há o Bach que ultrapassou a perfeição. Um não, dois. Falo, claro, das duas gravações que o pianista canadense fez das Variações Goldberg, em 1955 e 1981, respectivamente. Eu as ouvi em ordem inversa, por uma questão puramente casual. Estudava piano e meu antigo professor, outro idólatra de Gould, emprestou-me um VHS com um mini-documentário e a filmagem da gravação das Variações em 1981. Fiquei chapado, acachapado, mareado só de ouvir a sequência inicial sol - sol - lá si lá - sol fá mi ré - sol sol, da famosa ária tema. Ninguém nunca tocou as Variações como aquele Gould de 81. Quer dizer, ninguém exceto o Gould de 1955, que fui ouvir na ordem reversa, em 2004 quando comprei o disco (cd) com a gravação e, nas pesquisas prévias, descobri o romance O náufrago, do Bernhard.


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Gould, Werthmeier e o narrador (inominado), personagens do romance de Thomas Bernhard, são alunos do Conservatório de Salzburgo, nos idos de 1953. Um certo dia, os três vão a uma aula (de Horowitz) e Gould, como quem não quer nada, senta-se ao piano e inicia o tal  sol - lá si lá - sol fá mi ré - sol sol da abertura das Variações Goldberg, que irá antologicamente gravar dois anos depois. Isso é suficiente para provocar um turbilhão na vida dos outros dois amigos. Wertheimer comete suicídio anos depois, ainda sob os ecos daquela tão apaixonada quanto (para ele, para sua mediocridade) insuportável interpretação do Gould. O narrador, o "náufrago" do título, tenta sobreviver para narrar (quando da narração do livro, tanto Wertheimer quanto Gould já estão mortos), sobreviver para entender, sobreviver para naufragar na memória daquelas 30 variações, mais a ária já referida e repetida ao final da peça. O livro de Bernhard (um escritor que preciso ler mais) é de uma prosa exasperada, como é já lugar comum dizer (e sempre se diz), onde toda a falta de sentido diante da vida é expressa por esse narrador aniquilado pela beleza do Bach de Gould. É como se ele dissesse: depois de ouvir isso, viver para que mais?


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Li o livro de Benhard em 2004. Ouvi as Variações Goldeberg (versão de 1981) nos anos 90 (talvez 97 ou 98). Ouvi a segunda versão (1955) também em 2004. Estou em 2014 e sou um pianista frustrado resolvido. Não, não me matarei por Bach (e, espero, por nada nesse mundo). Também não posso dizer que sou um náufrago, como o narrador do romance, que não podia sequer ouvir Bach com Gould. Eu sou justamente o contrário, penso agora. Preciso viver para ouvir. Ouvir, nesse caso, não como sinal de naufrágio, mas de boia salvadora. Afinal, sou um pianista frustrado. E, agora mais que nunca, resolvido.



Do Jorge.



(Abaixo, os links para os vídeos com as versões das Variações Goldberg com Glenn Gould, primeiro a de 1981, depois a de 1955). 






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