sábado, 12 de abril de 2008

ENIGMA, SHAKESPEARE E ABUSO DE CLASSE EM "DOM CASMURRO"

Texto meu, meio antigo, mas que agora quis publicar. Segue:



Uma acusação que sempre recai sobre aqueles que escrevem sobre literatura é a de que estes preferem falar sobre autores consagrados, autores que têm atrás de si toda uma fortuna crítica na qual o sujeito pode se apoiar e escrever sem risco, com o conforto e a segurança de estar pisando num terreno absolutamente seguro. Pois foi exatamente um autor clássico que escolhi para iniciar esta coluna. Um clássico que tem estudos seminais, publicados por gente da estirpe de Antônio Cândido, Roberto Schwarz, Helen Caldwell e Fábio Lucas, grandes críticos. Um autor que é considerado o maior da literatura brasileira. Falo, obviamente, de Machado de Assis. No entanto, a segurança termina aqui, pois me proponho a analisar – em linhas gerais, diga-se, pois este não é um ensaio crítico profundo – o mais enigmático de todos os seus livros, Dom Casmurro. E em relação a este romance, não pode haver segurança. Mas corro esse risco.
Conto aqui minha experiência com o livro. Li Dom Casmurro há algum tempo, quando era ainda estudante secundário. Confesso: foi uma leitura enjoada, realizada apenas para cumprir um trabalho pedido pelo professor de português. Na época, fui levado (por quem, explico depois) a acreditar no seguinte: Capitu era culpada e Bentinho uma vítima do adultério da esposa com o melhor amigo do casal, Escobar. Já na faculdade, reli o livro e minha opinião foi oposta: Bentinho era um sujeito ciumento e Capitu foi a vítima deste ciúme. É claro que esta segunda leitura foi mais atenta, uma leitura acompanhada da leitura de outros textos a respeito de Dom Casmurro. Fiz ainda uma terceira, para confirmar a minha crença na inocência de Capitu.
E isso deve-se, em parte, à leitura do brilhante O Otelo brasileiro de Machado de Assis, livro da acadêmica norte-americana Helen Caldwell, publicado nos EUA em 1960 e que só em 2002 mereceu uma edição brasileira, publicada pela Ateliê. Nele, a autora apresenta e analisa uma série de aspectos do romance de Machado que, segundo ela, estaria impregnado de elementos shakespearianos. Uma tese revolucionária, sem dúvida – lembre-se que foi escrita em 1960 e por uma norte-americana –, mas que mostra-se plausível após uma leitura atenta de Dom Casmurro. Por exemplo, a parte final do romance não deixa de ser shakespeariana, repleta de reveses dramáticos: a tentativa de suicídio de Bentinho, a acusação à Capitu de sua suposta traição, a viagem de mãe e filho e as suas respectivas mortes, quase seguidas. Ora, Machado de Assis era um grande leitor de Shakespeare e não é de todo impossível crer que a maior inspiração à Dom Casmurro tenha sido Otelo. Lá estão o mesmo ciúme e o mesmo excesso de amor, o mesmo triângulo – Otelo, Desdêmona e Miguel Cássio podem ser substituídos por Bentinho, Capitu e Escobar – e a mesma tragédia que encontramos na peça de Shakespeare. Helen Caldwell vale-se da análise dos nomes das personagens para confirmar a influência de Otelo sobre Machado, como por exemplo o nome Santiago – sobrenome de Bentinho –, que segundo ela é uma fusão entre Santo e Iago, o vilão da peça de Shakespeare e que leva o protagonista a crer que sua esposa o traiu. A verdade é que, mesmo admitindo que a matriz de inspiração do romance de Machado de Assis tenha sido Shakespeare, trata-se de uma obra original em concepção narrativa e poderosa em força dramática.
Como disse, acredito na inocência de Capitu. Como a provo? Para responder à esta pergunta, remeto-me à outra pergunta, que fiz um pouco antes: Por quem fui levado, na primeira leitura, a acreditar na culpa de Capitu? Ora, esta é uma questão complexa, mas fácil de responder. O romance é narrado em primeira pessoa, por Bentinho, que nos conta sua desafortunada história de amor e “adultério”. E aí está a resposta à questão: a única versão dos fatos de que dispomos é a dele. E como ele crê no adultério, somos levados por ele a crer que isso realmente ocorreu. Não há a versão de Capitu, de Escobar. Só há a fala de Bentinho, homem rancoroso e ciumento, que massacra e a esposa e o filho (que ele julga ser de Escobar e não seu), mas que quer nos fazer acreditar que ele tem razão. Para isso, forja pistas que são dúbias e muito pouco confiáveis, se prestarmos atenção à elas. Trato de apenas um exemplo: a semelhança entre o filho de Bentinho e Capitu, Ezequiel, e o melhor amigo do casal, Escobar. No romance, esta semelhança é notada apenas por Bentinho. É ele que nos informa sobre ela. Mas será que havia realmente semelhança? Vejamos. No capítulo CXXI, Capitu diz a Bentinho que o menino tem o mesmo olhar de Escobar. Mas quem nos diz isso é o próprio Bentinho, o narrador. Além disso, as semelhanças resumem-se ao olhar e à mesma mania que Escobar tem de imitar os outros e que Ezequiel aprendeu e vive repetindo. Ou seja, muito pouco para que possamos realmente chamar de semelhança. Apenas por isso, podemos concluir que Bentinho manipula a história conforme seus interesses, ou seja, para provar a “culpa” de Capitu. Há outras passagens no texto que provam isso, como as cartas apaixonadas que ela escreve de seu exílio na Suíça e que ele lê com frieza ou o desespero e a surpresa dela diante das acusações de adultério. Conclui-se, pois, que Bentinho foi e fez Capitu vítima de seu ciúme. E, quando percebeu isto – quer dizer, antes do livro ser escrito, pois se tratam de memórias –, resolveu, para limpar sua consciência, nos contar a sua versão dos fatos. E essa versão é o romance Dom Casmurro.
Além disso, há outros aspectos importantes presentes no livro que devem ser explicitados; aspectos que são, na realidade, da própria ficção machadiana como um todo. Ora, ninguém ignora que com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas em 1891, a literatura produzida por Machado de Assis sofreu uma tal revolução formal, que tem sido objeto de alentados estudos até hoje. Como é possível compreender que um autor apenas mediano, que escrevera romances à moda do romantismo que então imperava na literatura brasileira, foi capaz de aparecer em 1881 com um livro tão surpreendentemente novo? Pois Memórias Póstumas é um livro em tudo diverso daquilo que Machado de Assis já havia escrito antes e, mais ainda, diferente de tudo aquilo que qualquer escritor brasileiro houvera escrito até então. Desde a temática (a história de um defunto-autor que decide, depois de falecido, contar a sua trajetória neste mundo), até a forma, deixando de narrar em 3ª pessoa para entregar a um narrador em 1ª pessoa os rumos da história. Além da quase perfeição estilística que é alcançada. Digo quase porque a perfeição total veio em seguida, quando apareceu Dom Casmurro, em 1900. Sobre essa mudança, Roberto Schwarz, importante estudioso da obra machadiana, expôs uma teoria importante: a prosa machadiana teria mudado radicalmente porque seu autor teria passado a transmitir a ela todas as relações sociais (e os rápidas transformações por estas sofridas) encontradas no Brasil do final do século XIX, em que escravidão e a monarquia chegaram ao fim e a república dava seus primeiros passos. Veja o narrador, Betinho, por exemplo. O que ele é, senão um estereótipo do moço perfeito e bem quisto das elites proprietárias brasileiras? Apesar de todas as arbitrariedades por ele cometidas contra Capitu e Ezequiel, podemos constatar que a todo momento ele quer se afirmar como civilizado, como pertencente à uma elite cultora de bons valores morais. Há ainda a exploração, no livro, de uma questão muito batida por Machado de Assis: a dos agregados, daquelas pessoas que, desprovidos de bens materiais, escoram-se naqueles que os possuem para subir e conquistar algum prestígio dentro da sociedade. E aí entra, como prova, a questão de mudança de perspectiva narrativa, pois se nós observarmos outros personagens agregados ou subservientes às eles presentes nos romances da primeira fase machadiana – que são narrados em 3ª pessoa, ou seja, por alguém ausente fisicamente da trama –, veremos que estes são tratados pelo narrador (em tese, o próprio Machado de Assis) com certa complacência. Ao passo que em Dom Casmurro, essas pessoas são expostas pelo narrador (o próprio Bentinho, e não Machado) como bajuladores e interesseiros. É o caso de José Dias, agregado da família de Bentinho e que é descrito como hipócrita e aproveitador; ou de Prima Justina, mulher seca e interesseira e que vive de favor na casa da família (deve-se lembrar que estão são as opiniões do narrador). Tudo isso prova a forte presença das múltiplas relações sociais do Brasil do final do século XIX no romance.
Poderíamos falar nas múltiplas possibilidades de leituras de “Dom Casmurro infinitamente. Os grandes livros são mesmo assim: revelam-nos novidades perenes. E isso é uma benção, pois podemos reler o livro por mil vezes e ao menos mil novidades encontraremos em cada uma delas. O prazer de mergulhar neste que é o maior romance da literatura brasileira paga a pena. E desvendar-lhe os mistérios nos deixa com um saldo ainda maior.
Do Jorge.

Nenhum comentário: